terça-feira, 13 de julho de 2010

Carta de além-túmulo do meu primo Luis Bernardo


Imaginem vocês que recebi esta carta de um primo que já morreu há vários anos e que me chegou à caixa do correio. Mais à frente perceberão como.

Creio ser o primeiro ser humano a ter verdadeiramente notícias reais, de além-túmulo. Vou deixar passar algum tempo para cair bem em mim, mas finalmente aparece alguém a explicar como tudo se passa. Aliás, nunca percebi porquê tantos mistérios!

Até este momento ou era a velha e comprovada tese “de cinza, pó e nada”, pelo menos é o que pragmaticamente se encontra nos caixões após as exumações (abertura após uns determinados anos) ou em alternativa o céu, o purgatório e o inferno.

Mas demos a palavra ao Luis Bernardo.

Meu Caro Manuel,

Ficarás surpreendido por receber uma carta minha, tendo eu morrido há já um par de anos. Pois imagina que descobri a maneira de enviar notícias e aqui estou a conceder-te o privilégio de saberes, creio que em primeira-mão, como tudo acontece.

Voltemos um pouco atrás ainda aí na terra.

Lembras-te da minha doença, do sofrimento por que passei e finalmente da minha morte, que veio estava eu ainda no hospital ligado a uma máquina.

A partir de um determinado momento senti-me aliviado e foi precisamente quando o Dr. Horta disse à enfermeira dos cuidados intensivos para me desligar do ventilador pois tinha entrado em morte cerebral.

Qual não foi o meu espanto quando constatei que efectivamente o meu corpo era como se fosse um emissor receptor e senti que um aviso foi emitido para algures.

A parte física do corpo começou a esfriar e a enrijar mas as funções vitais estavam em pleno fulgor e agora já sem sofrimento.

Ouvi a família aproximar-se, chorar, excitar-se e alguns mesmo, ficarem ao meu lado. Disseram de tudo, como calcularás, conhecendo tu o que nós sabemos de cada um dos membros da nossa família.

Finalmente confirmei as suspeitas de reacções mal explicadas por parte de uns, a hipocrisia de outros, o alívio de outros tantos, e tudo isto me fez pensar como bastas vezes damos importância a coisas que de facto não a têm.

Gostei da tua reacção. Choraste sentidamente e em silêncio, e fizeste-me uma festa na mão.

Tantas tardes e noites à conversa, tantas recordações de trocas de ideias profundas com tantas certezas, discussões acaloradas e apaixonadas que às vezes acabavam mal, mas que no fim nos levava a abraçar afectuosamente saindo cada um para a sua casa.

Lembro-me bem das dores e alegrias que compartilhámos em momentos altos e baixos das nossas vidas e das da nossa família.

A “seca” dos parentes e familiares chatos, o brilho dos inteligentes e mordazes, o encanto dos abertos de espírito e o horror dos fanáticos e radicais! Bem poderia estar aqui a desfiar o que foi a nossa cumplicidade e amizade, mas tudo isso é passado.

Entretanto chegou um emissário que me disse que estava tudo em ordem e que deveria com ele partir, deixando o corpo para trás.

Era uma ideia de voz e de presença que me era agradável. Pareceu-me um funcionário administrativo, pensei eu. Deus não seria de certeza, pelo menos ainda.

Vaidosos e convencidos que éramos. Brincávamos considerando-nos uns “deuses do Olimpo disfarçados” mas no fundo seguros da nossa inteligência e superioridade. Só alguns compartilhavam este nosso segredo e connosco se identificavam. A Rita era danada para nos desafiar a revelarmos o que nos unia tal como os cavaleiros do Santo Graal, mas nunca cedemos ao seu charme infinito e sedutor, e nada soube.

Vim a perceber que estes emissários podem levar notícias, por isso aproveitei a boleia de um que ia para perto de ti, e mandei-te esta carta.

Encontrei os teus Pais. A tua Mãe, a quem informei que te ia escrever, disse-me para que não tivesses pressa em vir. O teu Pai, está estupendo, como não são precisos médicos aqui, deu-lhe para tratar do jardim que é um bosque maravilhoso. Com a sua meticulosidade e perfeccionismo mantém as flores num mimo e fala com elas.

O teu Avô mandou vir de Celorico um daqueles enormes castanheiros centenários da vossa quinta do Soito da Parda e a tua Mãe senta-se a ler debaixo dele e a olhar para a relva linda em frente da casa, que o teu Pai cuida com muito desvelo.

Estive pouco tempo com eles, e ainda não pude começar a fazer outras visitas.

No fundo foi uma grande surpresa, pois o Deus de barbas e de voz “grossa ou meiga” conforme nos descreviam não é nada disso: nós estamos em Deus e não fala nem olha, pois somos parte de Deus.

Lembras-te de quanto nos ríamos ao ver as preces que se faziam para um bom resultado num determinado campeonato de futebol ou em pedidos para acertar na lotaria.

Nada de julgamentos finais, nem purgatório, nem muito menos inferno.

O inferno é aí na terra e tudo quanto fazemos por aí se fica, é passado.

Vê lá se continuas a ser boa pessoa, pensando nos outros e partilhando os teus afectos e de resto goza a vida e não te preocupes com minudências. Sê honesto como éramos e respeita a idade e cultiva a mente frequentando gente sã e curiosa da vida terrena. Quanto aos que inventam coisas sobre o divino, não percas tempo, pois não é nada assim. Logo verão quando chegar a sua altura.

Há tanto para fazer e ainda agora comecei. Vou-te dando notícias.

Só te deixo uma informação e, por enquanto, uma preocupação:

- sabendo como tens claustrofobia, terás uma grande surpresa, pois não a sentirás no caixão.

- a preocupação é a de que com tanta gente da família que quero visitar e melhor conhecer, para além de tantos outros que povoaram a nossa imaginação e a quem vou poder perguntar coisas que sempre nos intrigaram, ainda não me desliguei do conceito terreno do tempo.

O que será a eternidade? Maçada não é de certeza, mas por ora, confunde-me a ideia.

Vou tentar saber e depois digo-te.

Teu muito afeiçoado

Luis Bernardo

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