domingo, 30 de novembro de 2014

Valores


Às vezes, a companhia das outras pessoas não parece ser muito compatível com a companhia dos nossos ideais, com a companhia dos nossos valores.

Nessa altura, uma tentação sobrevém. Para termos a companhia das pessoas, abdicamos da companhia dos valores, das convicções.

É triste, mas, como refere Pedro Mexia, «ficamos sozinhos quando somos exigentes. Ficamos sozinhos quando não mentimos. Ficamos sozinhos quando defendemos as nossas convicções».

É claro que não devia ser necessário fazer esta escolha cruel: entre a popularidade sem convicções e convicções sem popularidade. Mas se tiver de ser, que seja.

Afinal, os maiores solidários acabaram por ser os grandes solitários.

A vida é mesmo paradoxal!

João Teixeira

(fotografia: pendentes com máscaras venezianas de esmalte e brilhantes - da colecção da minha Família)

Somos feitos de carne. Mas temos de viver como se fôssemos de ferro

O primeiro soco ninguém esquece. Soco no coração, quando a mãe nos abandona sem ao menos terminar uma frase. Cadê o leite, o afago, o mimo. O colo pra se encostar a cabeça. Não há ninguém na casa. Um som surdo de obra na pedreira adiante estupra o vazio dos quatro ambientes ligados à varanda. A lenha está murcha e desalentada no fogão. Você gostaria de aquecer seus sonhos com um mingau de aveia, mas a despensa morre de frio e abandono nas prateleiras. Porém, para sua surpresa, alguma sorte no universo assovia revelando a presença de uma cabra esperando pra ser ordenhada. Você corre e se agarra nas tetas da bichana. Ainda há leite. Depois também descobre alguns ovos mirrados no poleiro quase desabitado. Dá pra cozinhar e comer com o leite. É a glória.

Entretanto, precisamos suportar neste cenário a ausência de ruídos, exceto os da pedreira escrava das escavadeiras e britadeiras que a esfacelam sem dó. Faltam vozes, mexericos, lavadeiras e faxineiras nesta casa. Risadas bestas ecoando à toa. Alguém palitando os dentes e depois roubando um beijo de outro alguém. A campainha tocando, anunciando o pão fresco trazido pelo padeiro da cidadela vizinha. Mas nada acontece. Só na cabeça, nos voos solitários dos neurônios, nas tristezas úmidas e ofegantes. Nosso coração que era de carne vai enrijecendo devagar e discretamente. Parece que fibrosou, é o que se comenta na clinica da região.

Talvez ele pare de bater. Ou de chorar baixinho. Pode até necrosar, mas antes vai lembrar que já foi afagado por mãos suaves e perfumadas, quando o tempo girava sem pressa. Esse coração de pedra agora deve se virar sozinho. Olhar apenas para os sapos e lagartas que podem visitá-lo. Porque as artérias de que dispunha viraram raízes atreladas à próxima planta ainda por nascer. Sabe-se de antemão, todavia, que será uma planta vermelha, imponente, sanguínea, cuja origem todos irão ignorar.

Neste momento, algumas agonias despencam de sonhos nublados e tombam no chão desajeitadas, como minhocas sem rumo. Antes o coração era macio. O meu e o seu. De seda, filó. Às vezes se enfeitava de tule, tafetá e rendas. Em meio aos beijos a rodo estalando no ar das festas, trocados durante valsas, suspiros e rodopios. Nestes eventos, o licor de jabuticaba era servido ao final às mães, aos tios e primos.
A nós, a mim e a você, restava lambermos furtivamente os cálices, antes enchidos sem decoro. Era bom. Ouvia-se música, vida pulsante, longas tragadas de charuto, belos trajes dos convivas, comida farta, meneios previsíveis e intenções nítidas entre pretendentes e moças faceiras.

Nosso coração exultava possibilidades e encantos. Mas de repente sentimos medo. Viramos homens de lata, Iguaizinhos ao personagem do filme “O Mágico de Oz”. O coração desabou sarjeta abaixo, sem que ninguém desse conta. O amor sumira em pele e osso, maltrapilho como poetas mendigos.

Outros socos se sucederam ao primeiro. O ciúme arroxeado dos irmãos. As pequenas e efetivas maldades dos colegas de escola. A injustiça do professor de ciências. Os castigos absurdos. Respirar fundo era preciso, eu e você sabíamos para não perdermos de vista o beija flor cintilando fora da sala de aula. Além dos grandes caracóis do Carlinhos, muito bem cuidados com folhas de alface e couve, numa caixa de sapatos mantida debaixo do seu braço, na hora do recreio.

Meu coração já andava por cima das pedras, gemendo esfolado ao se entrechocar com as mais pontiagudas. Depois vieram novos desalentos. Puxadas de tapete, pregos espetados no colchão quase convidativo. Aprontaram com você também, foi? A essa altura, sentimentos como bondade, delicadeza, doçura foram trancados a sete chaves no baú de nossa avó.

Por fora restavam raiva, despeito e rancor, andando a esmo pelo sótão repleto de histórias amassadas. As emoções, reprimidas na ocasião, apresentavam-se pintadas de um negro fosco. Por outro lado a ficção, sem que se esperasse, atingia as telas do cinema. Eis que ele finalmente assomou poderoso. O “Iron Man”. Invencível. Herói de imensas lutas. Guerreiro imortal.

Nosso coração andava assustado embora entretido com as fantasias dos filmes avantajados por efeitos especiais. Afinal, era preciso manter-se atento e precavido. Nossos corpos então deveriam despojar-se da carne, dos tendões e músculos. Vestir-se de alumínio ou aço, entretanto, não surtiria efeito nem grandezas aos nossos gestos.

Necessitávamos de outras roupagens. Apossarmo-nos de uma coragem de ferro para prosseguir acreditando na fertilidade do amor em meio às cruéis batalhas da rotina. Apostarmos na tenacidade dos guerreiros da luz. Na fecundidade de ideais coloridos e emoções ensolaradas.

Somos feitos de carne. É fato. Mas percebemos nos dias atuais termos que viver como se fôssemos de ferro. Hoje, porém, fazemos isso de um modo diferente. Somos mais experientes, sofridos e prudentes. Por isso mesmo, passeamos por certas ousadias, mantendo os braços firmes e estendidos para as pequenas e irretocáveis ternuras da vida.

Graça Taguti

Alfinetes


Definham as palavras e as expressões com o andar do tempo, nos actos nada muda. Ao entregar à esposa, bem contado o dinheiro para a despesa doméstica, o marido doutras eras  acrescentava uns tostões, explicando que era "para os alfinetes".
"Para os alfinetes" era também o gracioso eufemismo para dinheiros de corrupção, num tempo em que o verbo locupletar dava à ladroagem uma aura de dignidade.
Refiro estas expressões antigas porque de momento me ocupam demasiadas coisas que não compreendo, e de certeza teria dificuldade em compreender, mesmo se mas trocassem em miúdos.
Será que li bem que o banqueiro Salgado recebeu uma prenda de catorze milhões de euros? Uma prenda? Há prendas desse montante? Terá sido para os alfinetes da madame?
O ex-primeiro ministro parece que manipulou uns vinte milhões,  deu nas vistas pela ostentação, vai preso para que evitar que rasgue papelada comprometedora. O banqueiro desviou uns quanto mil milhões, deposita três, e fica confortavelmente em casa, com a possibilidade de rasgar o que lhe apetecer. Quem compreende?
Claro que haverá explicação para a discrepância, e eu, cidadão, bem gostava que me pusessem ao corrente. Como também gostaria que os que jubilam com o infortúnio dum e doutro, porque infortúnio é, e a ninguém se deseja semelhante opróbio nem queda de tão alto, conhecessem e pensassem no que John Bradford (1510-1555) disse, ao ver passar um grupo de presos a caminho da forca: "There, but for the grace o God, go I" (Não fosse a graça de Deus, ia eu ali).

J. Rentes de Carvalho

sábado, 29 de novembro de 2014

O paraíso de Miguel Torga


“… o herói é só um: o bicho homem a afirmar a sua liberdade e a perdê-la a seguir, na tentação de solicitações confessionais, ideológicas ou outras. E a sorte que espera todos os figurantes é também sempre a mesma: a perdição total e sem remédio. A danação perpétua a que são condenados os que se deixam envolver no jogo viciado das ficções, a cuidar, pobres coitados, que assumem o seu pessoalíssimo destino. Títeres que a paixão obnubila, e só numa tardia hora de clarividência descobrem que, afinal, mais não fizeram do que viver a vida por procuração."

In " O Paraíso" de Miguel Torga


sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Recomeço

Recomeça...
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…

Miguel Torga

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

in dubio pro reo

  1. José Sócrates foi detido, e encontra-se em prisão preventiva. Tal resultou de uma investigação promovida pelo DCIAP, organismo judiciário competente, com a ajuda das polícias de investigação. Da averiguação resultaram uma série de elementos que levaram a que um Juiz de Instrução Criminal considerasse que havia indícios suficientes para convocar o ex-primeiro-ministro e pessoas suas próximas para um Interrogatório. O Juiz entendeu ainda haver razões para manter Sócrates sob prisão preventiva, com base em elementos que, nos seus contornos completos, nos são desconhecidos.
  2. José Sócrates é, para o processo penal e para a ordem jurídica, inocente, até que seja condenado pelo respectivo Tribunal. Esta presunção da inocência – do latim, in dubio pro reo (latinismo que tem andado na boca de muita gente) – não é, em qualquer caso, inilidível, ficando aliás ferida ao longo do processo, desde logo, quando sobre o indiciado recaem suspeitas. A presunção da inocência, sendo um elemento central do funcionamento processual penal, não pode – nem deve – impedir que haja juízos de apreciação, face ao conteúdo e relevância das suspeitas. A suspeita é o ponto de partida para uma clarificação, essencial, que afaste ou confirme os factos e/ou elementos que lhe servem de base. Assim, as suspeitas, ou são afastadas – levando a um arquivamento do processo – ou são reforçadas, devendo o Juiz de Instrução optar pela Acusação e consequente Julgamento.
  3. Até à Acusação ou Arquivamento, o processo encontra-se em “Segredo de Justiça”. O Segredo de Justiça, note-se, existe, não para salvaguarda do indiciado/réu, mas para garantir o sucesso da investigação. O Segredo de Justiça não é na nossa ordem jurídica um princípio absoluto, cabendo a quem dirige o procedimento/processo decidir que elementos devem ou não ser do conhecimento geral. O Segredo de Justiça é assim instrumental da investigação, e não um valor em si, não fazendo qualquer sentido a forma como tanta gente rasga as vestes em sua defesa.
  4. Tal não significa que as sucessivas iniciativas judiciais não devam estar devidamente fundamentadas; acontece é que, nem sempre, esses fundamentos devem ser do conhecimento público, porque se receia que isso possa prejudicar a investigação e a necessária clarificação.
  5. Em processo penal, como em tantas coisas da vida, muitas vezes tudo se perde por se “colocar a carroça à frente dos bois”. Num caso como aquele com que nos deparamos, há que ter a noção reforçada que as decisões não são seguramente fáceis, e que a escolha dos diversos timings é matéria profundamente sensível. Será que há fundamentos suficientes para que Sócrates tenha sido chamado para interrogatório? Será desproporcionada a sua detenção na manga, à saída do avião? E excessiva a detenção por três dias, acompanhada da medida mais dura de coação? Não sei, e porventura até quem dirige a investigação, teve de decidir sobre isto e muito mais com base em elementos contraditórios, e visitado várias vezes pela dúvida.
  6. O que seguramente não parece razoável é a excessiva dramatização que se tem feito em redor daquilo que está a ocorrer. O caso é grave, sensível, e sujeito às imperfeições humanas. Mas não compreendo que se faça de um simples caso, por mais importante que seja para o próprio e para muitos, o barómetro decisivo da saúde do Regime, numa lógica binária, de “tudo-ou-nada”.
  7. Mais. Sejamos claros: José Sócrates há mais de três anos que é um simples cidadão, não exercendo quaisquer funções de soberania. A sua detenção não perturba objectivamente o normal funcionamento das nossas instituições. Há um lado simbólico, para lá do Homem, neste processo? É motivo de descrédito termos um antigo primeiro-ministro sob tão graves suspeitas? Sim, mas nada, que não interesses particulares, convida a precipitações, pressas fáceis, ou tiradas mediáticas implacáveis, numa fase tão inicial de uma caminhada que pode até vir a ser tortuosa e demorada.
  8. A prisão de Sócrates coloca constrangimentos ao Partido Socialista? Sim, mas cabe a António Costa saber libertar-se de uma herança política – o socratismo – que até lhe fazia sombra, fazendo da dificuldade uma oportunidade para criar um espaço político-partidário verdadeiramente seu.
  9. Há uma longa agonia que podemos evitar se soubermos ter a serenidade de darmos a importância às coisas que elas nos merecem, e claramente ninguém morre se José Sócrates for condenado, ou ilibado das suspeitas que sobre ele recaem – isto, obviamente, sem prejuízo dos direitos que o próprio tem como cidadão, e que os deve legitimamente exercer.
  10. Tudo o resto a que temos assistido não são mais do que pânicos e sentimentos apocalípticos de fiéis seguidores que olhavam para Sócrates religiosamente, como se de um líder de uma seita protestante se tratasse, querendo fazer das suas dores as dores do País e dos portugueses. Também não me agrada o clima de “circo romano” que muitos montaram, exigindo a cabeça imediata de alguém que, sejamos rigorosos, está longe de estar condenado. Sinceramente, acho que a excitação vai passar rápido. O Regime está em crise, por causa do endividamento, das dificuldades diárias que os portugueses enfrentam, por causa do excessivo peso do Estado traduzido em impostos, pela incerteza quanto ao futuro que tantos hoje sentem, pelo desalento e falta de oportunidades, pela falta de qualidade e de respostas do sistema político. A prisão de Sócrates não vai causar tumultos nas ruas, nem invasões ao Parlamento. Nem, em sentido inverso, regenerar a Nação.
  11. A dramatização em nada favorece, aliás, José Sócrates. Havendo suspeitas, elas têm de ser clarificadas. Da sua clarificação poderá resultar até um arquivamento, ou uma absolvição em Julgamento, e não necessariamente uma condenação. Todos aqueles que hoje defendem que se não houver uma condenação a Justiça falhou, estão a colocar uma pressão prejudicial em instituições que têm de ser imparciais, na procura da Verdade, e não de condenações. O que é relevante nesta fase não é se no futuro José Sócrates vai ser ou não condenado, mas se os indícios recolhidos, na presente data, são suficientemente fortes para gerar uma suspeita susceptível de dar corpo a uma investigação. E daquilo que nos tem sido dado a conhecer, o que seria grave é que, perante os factos alegados, a Justiça não procedesse a uma investigação e aclaração.
  12. Há coisas que no nosso sistema penal não me agradam. Preferia viver num país onde fosse absolutamente proibida a divulgação de imagens à porta de tribunais, ou de diligências judiciais diversas, como as que assistimos aquando da sua detenção, buscas domiciliárias, ou visitas na cadeia. Gostava que o Ministério Público atuasse num ambiente onde não sentisse ser necessário legitimar a sua ação junto do público fornecendo elementos à comunicação social, como forma de poder prosseguir eficazmente a sua missão. E se estes aspectos – que não são tão secundários como muitos nos querem fazer crer – merecem a nossa atenção, não são eles que estão verdadeiramente em causa na investigação. Não me agrada o espetáculo, mas tão pouco vi nada de tão grave que justifique a imolação pública do Regime, à conta de uma detenção.
  13. Da minha parte, espero serenamente pelas incidências e clarificações, no devido tempo – o da Justiça – necessariamente mais lento do que a avidez das massas e a histeria coletiva que tantas vezes nos visita nos momentos polémicos e sensíveis. Para o bem e para o mal, somos latinos. E isso nunca ninguém vai domar.
         Rodrigo Adão da Fonseca

pressões

A declaração de Sócrates faz parte da sua técnica de intimidação, que tão bons resultados lhe deu enquanto PM.

Nota-se claramente que está a ser feita uma tentativa de pressionar os magistrados e o sistema judicial português, como foi possível ver nas declarações de ontem de Mário Soares.

Esperemos que a justiça continue o seu caminho e seja capaz de punir algumas situações lamentáveis que se verificam em Portugal e trazer de novo a correcção para a vida pública.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

entre os muros de uma prisão


Este caso da prisão preventiva do ex-Primeiro Ministro, fez-me reflectir para além da circunstância de ser quem é. Muito se tem dito nos últimos dias e o tempo provará da justeza ou não, das medidas adoptadas e das culpas imputadas.

Não é isso que me interessa agora, apesar de ter a minha opinião, o que é irrelevante, pois o que tiver que acontecer, acontecerá.

Hoje na minha aula a prisioneiros estrangeiros na prisão de Alta Segurança, preferi ouvir os comentários dos “meus” reclusos e fui tomando umas notas:

Primeiro: nunca nenhum prisioneiro se alegra pela entrada de mais um;


Segundo: há desde logo uma solidariedade que é manifestada, independentemente das causas presumidas ou conhecidas, salvo no caso de crimes especialíssimos;


Terceiro: a privação da liberdade torna os que já lá estão melancólicos e sonhadores e hoje, como que se fez um prolongado silêncio. Não disseram muitas mais palavras!


Dei-lhes um exercício escrito para fazerem em português sobre a música e qual o tipo de que mais gostavam. Entretanto, na biblioteca ao lado da sala de aulas, ouviam-se os sons do Concerto de Piano de Shostakovitch, nº2 em F, Opus 102, 2 andante, que eu escolhera. Seguir-se-ia Mahler, depois Lizt, Ravel e Debussy.


E os lápis, porque não podem escrever com canetas – um mistério – escrevinhavam rápido. Via-se que estavam deliciados por poderem, excepcionalmente, ouvirem um pouco de música.


Eu fechei os olhos e fiquei absorto num espaço fechado a sete chaves, com guardas armados até aos dentes a passarem no corredor, com uma câmara a vigiar todos os actos. 


E pensei que lá fora, há tanto ruído, tantas certezas e julgamentos precipitados, apaixonados e pouca vontade de perdoar, mesmo nas faltas e nas falhas.


Nem me passa pela cabeça não concordar com sanções para quem tenha prevaricado, e sendo os indícios ou culpas relativas a prejuízos causados à sociedade civil pelo enriquecimento ilícito próprio ou de outro tipo de crime grave, mais obrigação tem a Justiça de actuar, julgar e punir, estando os factos provados.


Mas, a maioria das pessoas não sabe que no momento em que se dá entrada numa prisão, cai um silêncio aterrador sobre cada recluso, uma solidão e mesmo em regimes mais abertos, tudo muda. 


E curiosamente, começa ou pode começar para cada recluso, a regeneração com vista à reinserção, no dia em que voltem à liberdade.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

passeio a pé por Lisboa



Tive esta manhã uma reunião próxima da Av. Almirante Reis. Como estava um fim de manhã esplendoroso, vim a pé desde o Intendente até ao Rossio.

Nunca tinha ido à zona renovada das antigas prestitutes..ahaha..e achei limpa, clara e com bom aspecto. É claro que era meio-dia!

Depois fui perdendo tempo, parando a cada montra a ver que lojas eram aquelas…muito engraçado andar a pé por Lisboa, o que faço muito, e sobretudo por zonas aonde eventualmente passo de carro e de fugida, a não ser que vá jantar ao Ramiro!

Fiquei pasmado pela profusão de lojas chinesas com bom aspecto e oferecendo, tal como em qualquer outra capital mundial, todos os produtos necessários à cozinha oriental, tais como panelas, tachos, recipientes próprios para os diversos alimentos, e uma enorme variedade de legumes e outras iguarias…achei formidável e divertido.

No Martim Moniz, entrei na Capelinha da venerada Senhora da Saúde e fui meter o nariz no Centro Comercial, cheio, igualmente de espaços com produtos orientais (chineses, indianos, paquistaneses, etc).

Se se quiser verdadeiramente comer como na China há uns quantos restaurantes caseiros, modestos e pouco apetitosos aonde se reserva uma mesa e refeição por encomenda, mas aonde a qualidade é excelente. O preço, como dizem os nuestros hermanos, é tirado!

Segui depois para a Praça da Figueira e fui constatando a existência de toda uma série de comércios tradicionais que já não existem em nenhuma cidade senão em zonas localizadas.

Acabei no Rossio aonde me sentei na esplanada da pastelaria Suíça, desfrutando um belo sol. Do outro lado o café Nicola, está sempre muito tapado e hoje apetecia luz e o astro-rei. 

Fui buscar o carro ao parque dos Restauradores sem, no entanto, ter deixado de passar em frente do Gambrinus no lado da Rua das Portas de Santo Antão, aonde uns lagostins, gambas e lagostas bem vivas aguçavam a boca e o bolso dos passantes.

Do you know what is sexy?


quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Be careful


Povos poderosos e longínquos suscitam muitas vezes suspeitas quanto à seriedade, capacidade e experiência nas negociações internacionais de grandes contratos. Há como que uma espécie de snobeira dos principais países europeus quando enfrentam a China, a Rússia, a Coreia do Sul, a Indonésia, naturalmente havendo sempre honrosas excepções.

Tenho anos de viagens e contactos com estes países, nomeadamente os dois primeiros e concordando que a China tem uma cultura negocial muito própria bem como a Rússia tem a arrogância do segundo país mais poderoso do mundo, é no entanto indiscutível que dispõem de meios financeiros incomparáveis para investir um pouco por todo o mundo.

Tornam-se por isso parceiros apetecíveis e tenho visto muito bom empresário tradicional transformar-se em fogoso, ambicioso e cúmplice interlocutor, perdendo a habitual compostura ética perante os procedimentos usuais nestes países.

Quero com isto dizer que a prática de corrupção seja ela activa ou passiva, tem a ver com limites, que são ou não ultrapassados consoante muitas e variegadas circunstâncias.

Na base está sempre o dinheiro e o poder. Vem isto a propósito destes recentes incidentes que despoletaram esta purga na concessão dos vistos gold, bem como no caso BES/GES.

Uma vez, estando eu em Banguecoque em trabalho e conhecendo um diplomata jovem da Embaixada dos Estados Unidos aí sediado, foi-me por ele contado um caso “fresquinho” acabado de acontecer:

- O número 2 da Embaixada, responsável entre outros domínios pela aprovação de verbas para a aquisição de material sensível de segurança, recebeu uma proposta para o fornecimento de um determinado equipamento. Como lhe competia, preparou um “file” e enviou, com o consentimento do seu superior hierárquico, o Embaixador, para o Departamento de Estado, em Washington, para aprovação de uma verba significativa. Acrescentava, que havia uma comissão de 5% e perguntava o que deveria fazer.

Passou-se um mês e não veio nenhuma resposta dos USA e o fornecedor submeteu nova proposta, agora com uma comissão de 10%.

O referido diplomata comunicou a pressão recebida e novamente inquiriu sobre o destino a dar à referida comissão.

Passaram mais 3 meses e o silêncio persistia. Nova proposta, desta vez com uma comissão de 20% a ser depositada na conta do diplomata.

Concluiu o meu amigo e colega do outro: acabou por sair da Embaixada pois pediu, “estranhamente” uma licença sem vencimento e dedicou-se a negócios privados.

O material foi adquirido pelo preço apresentado que tinha cabimento orçamental e a comissão foi parar às mãos de um zeloso funcionário que a dado momento foi superado pelos seus próprios limites de resistência à corrupção.

Conclusão: escolha trabalhar em empresas pobres, mal pagas e sem perigo de serem tentadas por gulosos corruptores….ahahaah

Ainda hoje, depois de ela já ter morrido há anos, tenho uma vaga suspeita que a Emília, cozinheira de casa dos meus Pais durante 50 anos, teria tido as suas fraquezas corrupcionais na praça, na peixaria e no talho e quiçá no merceeiro…mas sendo tão excelente “cordon bleu” está certamente perdoada e até ao que tudo indica ao serviço do Altíssimo, no Céu…ahahaah

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

ter prazer em fazer negócios



Estive toda a manhã numa reunião de quadros de uma instituição estrangeira, a fechar algumas transacções.Negociações difíceis, em inglês e alemão, mas gente competente e transparente à volta da mesa.

Pergunto-me sempre, de que vale a pena tentar enganar os outros, na esperança de que sejam tolos sabendo desde o princípio que nada se concluirá? 

Em países em crise como o nosso, tudo vale e contam-se pelos dedos quem tenha realismo e sobretudo o critério de deixar que os outros também beneficiem dos ganhos num negócio mútuo.

É muito retemperador encontrar pessoas decentes, prudentes e ponderadas, com limites na ambição desenfreada e excelentes profissionais.

o som que fazem as cobras


terça-feira, 18 de novembro de 2014

como umas aulas numa cadeia de alta segurança me podem fazer tão bem


Hoje foi mais um dia de aulas na cadeia aonde ensino Português a estrangeiros. Estavam sequiosos por conversa.

Tinha preparado um teste gramatical para 4 deles e uma composição para um outro que tinha faltado à última aula. O tema proposto foi o do que quereriam fazer, quando um dia estivessem em liberdade.


Mal arranjaram um pretexto para interromperem, foi galhofa, conversa solta entre eles, pois não se vêem entre si. Cada um tem a sua cela aonde passa os dias fechado, só com 2 horas de pátio murado e nunca com mais de 3 reclusos, que variam a cada dia.

Eu assisto, participando também, intervindo quando me pedem.

Quando saí, disse para as orientadoras já longe das celas: cada dia que venho, sinto-me melhor pessoa.

E não desvendo eu, o que lá dentro se passa em termos das nossas conversas, as suas angústias, solidão, os seus planos de futuro, as suas tristezas, desespero. Mas também, com o meu optimismo e boa disposição, rimos e contamos histórias divertidas e sinto que tanto para eles como para mim, é um novo mundo que se vai construindo.

Pode parecer ridículo e obsessivo esta minha dedicação a esta causa, e aceito que se torne maçador para os meus leitores, só que não desistirei de trazer um pouco mais de humanidade, de compreensão e de ternura a quem se sente incompreendido.

Bem sei que me contra-argumentarão que estando presos numa cadeia de alta segurança, alguma coisa terão feito e aparentemente de grave. Sim e não.

Há crimes e crimes, e há agentes desses crimes que são distintos uns dos outros e com graus de culpa e com consequências causadas que variam muito em importância e gravidade.

Por isso, antes de mais é necessária uma atitude expressa de perdão, de escuta, de ajuda no recomeçar.

Estou sempre a repetir-lhes que a vida cá fora, não é um mar de rosas e que é dura e difícil, e cruel e injusta e dolorosa para tanta gente que oficialmente está livre, mas tantas vezes presa à sua infelicidade.

Eles olham com um ar sonhador…rapazes novos, com já 4 a 5 anos de reclusão total sem nunca terem saído para um campo verde, sequer, da própria cadeia, com a possibilidade de tocarem fisicamente num abraço, num afago, a quem mais gostem, UMA VEZ POR ANO! há qualquer coisa na lei, que é feita por monstros legisladores, que nunca puseram os pés numa cela de uma prisão de alta segurança…

E esta é a minha luta diária pela melhoria das condições, com vista ao que o mundo da doutrina nesta matéria apregoa cinicamente de reinserção na sociedade civil…nestes termos é indignante, inoperativa e contraproducente.

Oxalá possa ir encontrando almas gémeas que comigo possam ir dando apoio e encorajamento para a mudança.

Trisavô que disse em ar de nada que ia ali comprar uns biscoitos e que voltava.....!

Estive a arrumar uns papéis antigos do arquivo familiar que estão aqui em Lisboa e encontrei uma carta de uma Trisavó materna para a Mãe dela, queixando-se do marido.

E que queixa era essa? Toda a vida ouvi na minha família a narração deste Trisavô que disse em ar de nada que ia ali comprar uns biscoitos e que voltava, nunca mais tendo regressado até hoje! Suspeitamos que qual Dom Sebastião, ainda possa aparecer montado a cavalo no meio do nevoeiro…

Naturalmente que esta carta à minha Tetravó é triste, pois o safado deixou a mulher e três graciosas filhas donzelas abandonadas, e não fora o apoio dado pela família, tenho dúvidas que este vosso criado, pudesse estar a escrever estas saudosas linhas sobre tão estuporado avoengo…

Com esta carta, reli uma muito posterior dirigida por ela à mesma Mãe, narrando-lhe como estava feliz, rica e com uma excelente vida, tendo as filhas educadas nos melhores colégios.

Acontece que este súbito desaparecimento redundou na sorte grande, pois o Avô que o substituiu tinha vastas roças e minas em S.Tomé e Angola, era um fidalgo muito bem aparentado e proporcionou à descendência não só um estadão de vida internacional, pois adorava fazer viagens por todo o mundo, como deixou vasto património cultural – livros preciosos, pinturas de autores excelentes e conhecidos, baixelas de prata e móveis de grande beleza e qualidade, colecções de moedas de ouro, as ditas minas, não de Salomão, mas parecidas, casas, quintas que vinham do seu lado, e deu aos meus Avós e Tios Avós uma esmeradíssima educação.

Eram uns verdadeiros “sportsmen”, nomeadamente na esgrima e na paródia, frequentando a melhor sociedade.

Fiquei a cogitar o que motivaria uma tão escandalosa partida, deixando tudo para trás. Fica-se a saber que já naqueles tempos, quando a convivência se tornava insuportável, intolerável e massacrante, o melhor remédio era a libertação total e o corte definitivo. Cada um sabe de si e Deus Nosso Senhor de todos...

Ele era “galante uomo”, muito letrado e dado à escrita e à poesia, e tanto quanto sei, pouco dado à gestão da fortuna familiar. Gostando mais de salões literários e de fados e guitarradas sendo pouco atreito a uma vida severa familiar, com uma estrita educação religiosa.

Usava esta frase nos seus escritos que copiei para mote do meu blogue: …”J'agace mon millieu, et alors! C'est le cadet de mes soucis” !

Quem sai aos seus, não é de Genebra…

domingo, 16 de novembro de 2014

a atenção aos pequenos detalhes


Das coisas mais importantes para uma convivência bem sucedida entre dois seres humanos, é a atenção aos pequenos detalhes.

Parece que Napoleão ditava 10 cartas ao mesmo tempo ou pelo menos a dez assistentes e consta que Marcelo Rebelo de Sousa tem também um bom score.

Desespero quando alguém que está com um iPhone nas mãos, não consegue ao mesmo tempo prestar atenção a uma frase, a uma saudação, a um comentário sobre o que passa no ecrã da televisão ou na janela….e pergunta 5 ou 10 minutos depois, ahn? 

Esta falta de atenção “panorâmica simultânea” para falar em termos de odontologia por referência às ditas radiografias, pode trazer omissões sem retorno do visionamento de um lapso de segundo vital num programa de televisão ou musical, de um comentário de voz, de uma decisão urgente a tomar que não se padece com o decorrer do tempo…

E o que mais irrita é que essas pessoas ainda se sentem insultadas se fazemos um reparo.

O mesmo se diga, de comprar, por exemplo, bananas por ser do que se gosta em vez de outra fruta de maior agrado da outra parte, eu sei lá…tanta coisa que torna a solidão um apetecido remédio.

Alguém citava um grande egoísta conhecido, que dizia que o mais importante era o gostarmos de nós próprios, e esta hein?

sábado, 15 de novembro de 2014

Sumido de Luís Fernando Veríssimo


Me disseram "Você anda sumido" e me dei conta de que era verdade. Eu também, fazia tempo que não me via. O que teria acontecido comigo? Não me encontrava nos lugares em que costumava ir. Perguntava por mim e as pessoas diziam "É verdade, você anda sumido". E "Que fim levou você?" Eu não tinha a menor ideia que fim tinha me levado. A última vez em que me vira fora, deixa ver... Eu não me lembrava!

Eu teria morrido? Impossível, na última vez em que me vira eu estava bem. Não tinha, que eu soubesse, nenhum problema grave de saúde. E, mesmo, eu teria visto o convite para o meu enterro no jornal. O nome fatalmente me chamaria a atenção.

Eu podia ter mudado de cidade. Era isso. Podia ter ido para outro lugar, podia estar em outro lugar naquele momento. Mas por que iria embora assim, sem dizer nada para ninguém, sem me despedir nem de mim? Sempre fomos tão ligados.


No outro dia fui a um lugar que eu costumava frequentar muito e perguntei se tinham me visto. Não era gente conhecida, precisei me descrever. Não foi difícil porque me usei como modelo. "Eu sou um cara, assim, como eu. Mesma altura, tudo". Não tinham me visto. Que coisa. Pensei: como é que alguém pode simplesmente desaparecer desse jeito?


Foi então que comecei, confesso, a pensar nas vantagens de estar sumido. Não me encontrar em lugar algum me dava uma espécie de liberdade. Podia fazer o que bem entendesse, sem o risco de dar comigo e eu dizer "Você, hein?". Mudei por completo de comportamento. Me tornei - outro! Que maravilha. Agora, mesmo que me encontrasse, eu não me reconheceria.


Comecei a fazer coisas que até eu duvidaria, se fosse eu. O que mais gostava de ouvir das pessoas espantadas com a minha mudança era: "Nem parece você". Claro que não parecia eu. Eu não era eu. Eu era outro!


Passei a me exceder, embriagado pela minha nova liberdade. A verdade é que estar longe dos meus olhos me deixou fora de mim. Ou fora do outro. E um dia ouvi uma mulher indignada com o meu assédio gritar "Você não se enxerga, não?" E então, tive a revelação.


Claro, era isso. Eu não estava sumido. Eu simplesmente não me enxergava. Como podia me encontrar nos lugares onde me procurava se não me enxergava? Todo aquele tempo eu estivera lá, presente, embaixo, por assim dizer, do meu nariz, e não me vira. 


Por um lado, fiquei aliviado. Eu estava vivo e bem, não precisava me preocupar. Por outro lado, foi uma decepção. Concluí que não tem jeito, estamos sempre, irremediavelmente, conosco, mesmo quando pensamos ter nos livrado de nós.


A gente não desaparece. A gente às vezes só não se enxerga.


Luís Fernando Veríssimo

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Teus olhos entristecem

Teus olhos entristecem
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham esquecem...
Não me ouves, e prossigo.

Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.

Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.

Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase não sorrindo.

Até que neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.

Fernando Pessoa

Collette


Collette levantara-se nessa manhã de sábado que se anunciava de sol de verão e quente, com vontade de descer de Saint Germain en Laye aonde morava, até Paris e de lá passar o fim-de-semana.

Tinha sido uma noite de enfadonha actividade sexual com o actual pseudo namorado e a bem dizer, queria novidade. Não que ele não fizesse bem o amor, mas a rotina instalara-se e Collette procurava novas emoções e talvez até um Monsieur, naturalmente mais velho do que ela que lhe desse estabilidade, um pequeno apartamento moderno e cosy, dali podendo fazer planos de futuro, quem sabe se uma carreira no teatro ou na moda, ou até ter um filho ou filha para a ampararem na velhice.

Nos seus esplendorosos 25 anos, não fazia muito sentido pensar na velhice, mas o conforto que o Monsieur lhe proporcionasse, já era um investimento antecipado.

Pôs-se nua, olhou-se no espelho e começou a mover-se sensualmente, ora valorizando os seios grandes e bem proporcionados com uns bicos salientes e rosados, ora mostrando as ancas e as nádegas, tudo roliço, sem gorduras nem celulite, roçando as mãos lenta e voluptuosamente pela pele suave e descendo-as até à zona púbica.

Sabia bem como o seu corpo excitava os homens com quem estava e as pernas bem feitas terminando nuns pés perfeitos com unhas bem cuidadas, lembraram-lhe que teria que ir vestida com roupa leve e provocadora, no fundo como as grandes coquettes da belle-époque, deixando vislumbrar o necessário para despertar os sentidos com o fruto escondido.

O problema era sempre o mesmo: falta de dinheiro! Quem vive do corpo, não tem avanços por conta e o fim do mês estava a chegar e com o namorado era free love!

Por isso teria que ficar mais uma vez num hotel de segunda, o Hotel Berkeley em Montparnasse. Aí fiavam e no fim da estadia logo compunha as contas, até muitas vezes nem era ela a pagar, pelo menos as despesas do hotel, pois dependendo da satisfação do cliente, era generosamente compensada.

Sabia que num hotel de 2ª, dificilmente encontraria um Monsieur, como ela sonhava, mas dali partia para jantar ou cear ou beber um copo em restaurantes mais sofisticados ou numa discoteca e tudo era possível.

Meteu num nécessaire, umas calcinhas minúsculas e hiper-sensuais, as pinturas e um soutien que lhe valorizasse os bicos do peito, que ela constatava porem a maioria dos homens em fogo sendo sempre o prenúncio de grandes desenvolvimentos.

Ela era pragmática, quase nunca tinha prazer com clientes, havia-os tão loucos e depravados, que hoje em dia até era perigoso. Tudo quanto metesse dor e sofrimento, sadomasoquismo, e fantasias excessivas, era firme e recusava, mas para não perder o cliente tinha uma prodigiosa imaginação de chatte provocadora e irresistível.

Nunca se esquecia de meter na carteira uma pequena medalhinha da Notre Dame du Bac, cujo santuário era na rue du bac no centro de Paris, de muita devoção das putas pois, dizia-se que ao ter aparecido a Santa Catarina Labouré, as Monjas dedicando-se à protecção dos pobres e das prostitutas, ali as recebiam em acolhimento e protecção na velhice.

Não era nada religiosa, era um pouco supersticiosa e era devota do prazer carnal, vivo e sensual, e rebolava-se na cama de muitos homens.

Parecia um contra senso, mas a sensação que transmitia aos homens que com ela dormiam era a de perfeitos orgasmos, de um prazer infinito que pretendia sentir com as performances masculinas e por isso o porteiro da noite do Hotel Berkeley, a troco de uns cobres, procurava-lhe sempre o melhor produto que o hotel pudesse oferecer como clientes endinheirados.

Havia a técnica de a introduzir no quarto de algum cliente que, estando ausente durante o dia, ao regressar encontrasse a sua cama recheada com um bombom daqueles.

Claro, já tinha havido protestos de clientes indignados que ou por princípios, ou por cansaço de dias de trabalho intensos, queriam pura e simplesmente dormir sozinhos!

Chegada ao Hotel Berkeley por volta das 17h, o concierge meteu dois dedos de conversa com ela sobre tudo e nada, e referiu-lhe que tinham chegado nessa manhã dois estrangeiros que vinham ao engano, pois tinham aspecto de frequentadores de hotéis de luxo e um deles até, o mais alto, teria dito que só regressava ao fim da noite e que queria um quarto decente e confortável, senão mudaria de albergue!

Dera-lhe o número 10, o habitual do canto, discreto, no primeiro andar, com uma cama grande de casal e tinha verificado que seria homem de dinheiro, pois a mala de fim de semana era de pele e tinha a assinatura de Lancel. Ousara abri-la na sua ausência e encontrara o normal de um saco de homem, mas o set de toilette era cuidado e com óptimos produtos de beleza e água-de-colónia de marca. Acresce que deixara como garantia do pagamento de extras, um cartão de crédito gold do American Express.

Enquanto passavam as horas, Collette tinha ido comer algo a um bistrot em frente e ao beberricar um copo de bom vinho tinto, pusera-se a pensar que naquela noite, apetecia-lhe uma fantasia e deixar-se apaixonar pelo cliente ou pelo menos assim demonstrar e gozar sexualmente como se não fosse uma puta. Já há meses que precisava de se entregar e a descrição do concierge era de molde a poder encontrar uma aliança promissora entre uma aventura e talvez uma companhia para outras viagens.

Tarde na noite, por volta das 22h quando se introduziu no quarto, escolheu criteriosamente como o deveria receber quando com espanto, ele realizasse que tinha companhia.

Se saísse completamente nua e pretensamente estremunhada da cama quando a porta se abrisse, parecia-lhe vulgar e sem classe.

Poria as calcinhas minúsculas que deixavam à mostra as curvas perfeitas das nádegas e uma sombra na parte da frente, e hesitou se deveria por o soutien que lhe valorizava os seios, ou os devia expor com descaramento, ainda que com encenação.

Nessa noite, sentia o desejo de não ter que representar e seria com naturalidade que agiria adaptando-se às circunstâncias.

Chegados ao Hotel Berkeley, Manuel e António deram-se as boas noites e conversaram mais uma vez sobre a reunião do dia e às tantas António foi subindo para o 3º andar, pois tinha a chave do quarto.

Manuel tinha deixado a chave na portaria e ficou muito irritado quando o concierge lhe disse que não a tinha e que a devia ter levado consigo na pasta.

- Não levei – disse furioso – e lembro-me bem de a ter deixado à sua colega dizendo-lhe que não precisava dela durante o dia, pois estaria fora em reuniões só regressando à noite – acrescentei, com crescente impaciência.

- E agora, como vamos fazer? Quero ir deitar-me já! – disse com uma total falta de pachorra.

- Vou eu lá a cima com Monsieur, abrir a porta com a chave-mestra.

Metemo-nos no elevador e como era no 1º andar, foi rápido e chegámos à porta. Ele abriu-a e eu acendi a luz no interruptor do quarto junto à porta, pela parte de dentro.

Olho para o quarto numa vista rápida e constato duas coisas absolutamente inesperadas: um nécessaire aberto ao lado do meu saco de fim-de-semana e um vulto feminino, que se levanta da cama, de entre as roupas, estremunhada.

Fiquei uns segundos sem palavras, estupefacto, e virei-me para o concierge que me olhava cautelosamente embaraçado, à espera da minha reacção.

Perguntei-lhe o que era aquilo e ele disse-me que devia ter havido engano, que ia lá abaixo verificar e logo voltaria para tudo se esclarecer.

Respirando fundo, olho com algum pudor para uma criatura deliciosa e pergunto-lhe o que faz ali.

Disse-me que morava fora de Paris e que devia ter havido uma troca de quartos, mas como o hotel estava cheio, e aparentemente a chave estava na portaria, o concierge inadvertidamente teria considerado o quarto livre.

Fechei a porta pois já chegava de falta de reserva.

O concierge voltou uma meia hora depois, entreabriu sem barulho a porta do quarto e disse em voz baixa: bonne nuit Mlle Collette!

In "Contos Breves"  de Vicente Mais ou Menos de Souza

o segredo da Quinta da Esteva - Contos breves



Desde que a Mãe morrera, Luís vivia sozinho na Quinta da Esteva, perto de Anadia. A entrada era através de um portão senhorial, com um arco de pedra sustentado em duas colunas com as armas dos Canedos.

Estes Canedos, provinham de uma antiga família de Castela que tinha servido os diversos monarcas e viera para Portugal numa das múltiplas incursões ao longo dos séculos.

Na sala principal, com tectos de caixotão e uma lareira antiga com uma bordadura de pedra aonde Luís expusera uma série de fotografias da sua Mãe, estava por cima  pendurado um retrato pintado de Don Pablo de Orilla y Valdesqués, antepassado da família nos princípios do século XIX, solteiro, muito bem-parecido, de olhos azúis e tez clara e de cabelos aloirados.

Luís sempre se perguntara sobre a história deste parente, e tanto do Pai como da Mãe só conseguiu arrancar que era considerado na família como um excêntrico.

Sentia uma enorme atracção pela figura do retratado e quando de noite, com insónias, vinha para a sala, olhava-o na penumbra e tentava adivinhar o seu passado.

Quando terminou os seus estudos em Coimbra – uma licenciatura em História – regressou a Anadia e trouxe a memória de poucos amigos da vida académica. Sempre se dera com os filhos dos caseiros, e a amizade que tinha pelo Leandro, era a de um verdadeiro irmão, como se de sangue se tratasse.

A família Serro, já servia como feitores dos Canedo desde há cinco gerações e eram tratados com toda a confiança e consideração, sempre tendo sido muito respeitados. 

Tinha, aliás, havido no passado, um episódio que estreitou ainda mais os laços de mútua admiração, pois um Serro tinha salvado um Canedo de ser morto durante as invasões francesas e evitado que a Casa fosse pilhada.

Luís passava os dias consultando o arquivo da família, no secreto desejo de encontrar algum traço sobre a vida e existência de Don Pablo de Orilla.

Leandro era um rapaz bem encorpado, com olhos azuis e cabelo aloirado e parecia tudo menos um moço do campo. Tinha um garbo e uma presença que era muito falada por toda a gente.

Os seus pais, tinham nele muito orgulho e destinavam-lhe um futuro distinto do de ser filho de caseiros. O Pai de Luís tinha-o mandado educar no liceu de Anadia pelo que ele tinha umas letras e uma sólida formação. Era desportista e jogava à malha como ninguém nas cercanias, corria, caçava, pescava e atirava ao arco.

Pelo seu lado, Luís era também alto e delgado de corpo, olhos castanhos pestanudos, mãos de pele muito branca e dedos fininhos, pouco mexido, apesar de fazer algum exercício diariamente pois gostava de passear, embrenhando-se pelas matas da Quinta, durante boa parte do dia. O seu passeio preferido era ir até à “fonte dos amores”, aonde se dizia ter o poço, uma água que enfeitiçava quem a bebesse. Passava horas melancólicas, em silêncio total e em contacto com a Natureza. 

Um dia, Leandro andando à caça por aquelas paragens, encontrou Luís junto à fonte. Abraçaram-se e começaram a conversar. Já não se viam há uns meses, pois este último tinha ido fazer uma viagem pela Espanha e tinha estado em Castela. Descreveu-lhe como tinha gostado, e a conversa fluiu sobre outras frivolidades.

Às tantas, Luís falou-lhe no quadro grande por cima do fogão da sala e do intrigado que andava em tentar saber mais sobre o seu antepassado, e olhando para Leandro que o escutava de perfil com um raio de sol iluminando o seu rosto, estremeceu, pois achou parecenças entre os dois. A cor dos cabelos e dos olhos, o porte: mas disfarçou a emoção pois concluiu que se tornara numa obsessão.

Regressando a casa, pôs-se de novo a pesquisar os documentos da época e encontrou um testamento de um antepassado, que deixava os seus bens e a quinta ao seu descendente Don Pablo e a uma filha, tida fora do casamento, um legado em dinheiro e um anel de ouro com uma safira, em homenagem à cor azul dos seus olhos. E mais não dizia, nem indicava o nome da legatária.

Luís ficou a cismar e decidiu que havia de conversar com Leandro sobre o anel e o legado, pois achava uma descoberta fascinante e um progresso nas suas pesquisas.

Continuando a folhear papéis, encontrou um envelope fechado e lacrado com as armas dos Canedo e com uma inscrição: Abrir só em caso de necessidade.

Datava do princípio do século XIX e a tinta e letra mantinham-se em bom estado de conservação.

Luís, excitado, partiu o lacre e desdobrou o documento que continha um texto que o surpreendeu, pois acabara de encontrar a resposta às suas dúvidas.

Mandou recado a Leandro para se encontrarem a seguir ao jantar na Casa da Quinta e esperou ansioso que as horas passassem.

Assim que Leandro entrou na sala, de camisa branca impecável aberta no peito, com umas calças justas de algodão e o cabelo loiro descaído sobre a testa, de repente parecia que o retratado tinha saído do quadro e que Don Pablo de Orilla estava vivo e ali presente.

Abraçaram-se e Luís disse-lhe de chofre: 

- Já viste que és igual ao do quadro? 

Leandro, olhou devagar e ficou calado uns momentos. 

- Talvez, mas como seria possível tal coisa? – concluiu.

Luís falou-lhe da carta lacrada, e começou a contar-lhe sobre o que descobrira:

- o meu Trisavô, deixou escrito no testamento que entregassem dinheiro e um anel de ouro com uma safira a uma filha bastarda, cujos olhos azúis, eram assim lembrados na pedra preciosa.

Leandro, com uma enorme estupefacção, confirmou a Luís haver em sua casa um anel que correspondia a esta descrição.

E Luís continuou: a carta descrevia que o seu filho segundo, de nome Pablo, não gostava de mulheres, pondo em risco a sucessão no vínculo o que muito o entristecia. Narrava ainda que andava perdido de amores por um dos filhos dos caseiros, o que o fazia ter que guardar este segredo, pois a filha fóra do matrimónio que tivera, era da mulher do feitor e por isso mãe, do dito amante do seu filho.

Ficaram ambos em silêncio, e após uns bons minutos, caíram nos braços um dos outro, tratando-se por primos e Luís mandou abrir uma garrafa de xerez para comemorarem a nova descoberta.

Dizem as crónicas que os pássaros que poisavam na árvore em frente do quarto de Luís viram, através da janela entreaberta, os dois primos, pelo nascer do sol, muito abraçados na cama e com os lençóis em desalinho. 

In "Contos breves" de Vicente Mais ou Menos de Souza