domingo, 29 de maio de 2011

Conto da dona Lili (9) final - a liga preta...


A agonia de dona Lili fora muito serena: foi-se apagando aos poucos.

Todos os dias conversava com Maria Alberta sobre coisas do passado: era como se já não estivesse lá.

Uma tarde, pediu-lhe para trazer uma caixa de cartão que guardara numa gaveta da sua cómoda.

Maria Alberta pegou na caixa e trouxe-a para o seu regaço. Devagarzinho, começou a desatar uns laços de seda que a fechavam e as mãos descarnadas, um pouco trementes, entreabriram a tampa.

Parou por momentos e ficou em silêncio olhando para a frente, para o vazio.

A sua cara não traduzia nem alegria nem tristeza: somente apatia.

Depois, como que acordando da modorra em que mergulhara, disse:

- Vou-te desvendar algumas coisas do meu passado que guardei até hoje à espera de que alguém as merecesse conhecer. Creio que tu, és essa pessoa. Tens-me tratado carinhosamente, narraste-me toda a tua vida entrando em detalhes que revelaram teres confiança em mim. Pois eu vou retribuir-te na mesma moeda.

E levantada a tampa da caixa, apareceram fotografias de uma mulher em "dessous" a exibir-se enroscada numa coluna fazendo strip-tease, umas poucas cartas e pasme quem não acredite, uma liga fina de cetim preto, daquelas que as coristas usavam nos espectáculos.

- Era a minha vida dupla! - Adorava dançar num cabaret de alterne e os cavalheiros, conforme o seu agrado, punham-me notas por entre a liga.

Maria Alberta não cabia em si de espanto e não se conteve e começou a rir às gargalhadas.

- Então a prima era puta? – disse num sufoco.

- E de luxo, fica tu sabendo. Tive muitos senhores que me queriam pôr casa, mas nunca quis. Fiz bem, tive o meu tempo e envelheci mal, agreste e solitária. Desapareci e nunca mais ninguém me pôs a vista em cima.

- E a prima, ao menos, foi feliz? – perguntou Maria Alberta numa voz comprometida.

- Olha tanto quanto alguma boa companhia pode ser o portador dessa felicidade: não vês tu que a vida é feita de momentos, de preferência de bons momentos? Esses eu tive-os – acrescentou dona Lili.

- Pois fique sabendo a prima que eu no Brasil quando fugi do meu marido não tive outro remédio senão ir vender o meu corpo para as casas de meninas de luxo do Rio de Janeiro.

- Ó Maria Alberta, tu queres ver que é de família! – e abraçaram-se muito as duas, com muita comoção.

A morte de dona Lili sobreveio poucos meses depois e Maria Alberta, com surpresa, tornou-se herdeira de algum património que a prima lhe deixara em testamento.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Conto da dona Lili (8) Abandonada


Maria Alberta tinha-se tornado no anjo bom de dona Lili. Mudara-se de armas e bagagens para a sua casa e era-lhe muito dedicada.

Dona Lili piorava dia a dia: o cancro carcomia-a e debilitava-a. Maria Alberta cuidava dela, tratava-a com carinho e solicitude e o tempo ia passando, aproximando-se o fim.

Desde que dona Lili ouvira as narrações de Maria Alberta ficara muito impressionada. Por um lado descobrira uma parenta, o que no fundo era um motivo de alguma vaidade pois apresentara-a na vizinhança como a prima do Brasil – nem toda a gente tem primos no Brasil e ainda por cima tão maneirinha e bem apessoada como ela – e depois porque começando a sentir que a morte sobrevinha, deixava assegurado o futuro da herança.

Mandara vir um notário, num dia em que Maria Alberta se ausentara para fora de Lisboa, ditara o seu testamento a favor dela, e a partir desse momento o seu coração amansou, tornou-se menos áspera e gozava as delícias de ter alguém que desinteressadamente dela tratava.

Maria Alberta contara-lhe que quando fora posta na rua pelo dr. Daniel, o seu maior temor tinha sido o de retornar a casa sem que pudesse dizer ao seu marido das razões de tão súbito desemprego.

A amargura e a angústia aguçam o engenho e Maria Alberta lembrou-se de que poderia justificar o seu despedimento como tendo sido pelo facto do dr. Daniel, aproximando-se da reforma, estar a programar volver à xácara e aí viver em definitivo.

A razão foi entendida, não sem resmungos, e ficou decidido que Maria Alberta voltasse a procurar emprego a partir do dia seguinte.

Nessa noite, estando menos embriagado, teve vontade dela, de a possuir com bruteza, fazendo-a gozar mostrando quem mandava. Sentiu-a fresca, nova, com carnes tenras e roliças e esboçou os primeiros gestos para a abraçar e despir.

Maria Alberta levantou-se de sopetão da cama e disse-lhe que estava doente, que talvez fosse imprudente qualquer contágio pois o dr. Daniel mandara-a observar no hospital e a conclusão foi a de que teria que manter a abstinência, pelo menos durante os 6 meses seguintes.

Ficou furioso mas timorato – nessa altura morriam como tordos de infecções venéreas – e encolhendo os ombros pensou que teria outras mulheres quando lhe aprouvesse e adormeceu.

Maria Alberta decidiu nesse momento que urgia partir e para sempre. Gizou mentalmente um plano de fuga e adormeceu mais tranquila pensando que talvez pudesse zarpar com Dani que lhe prometera o céu na terra!

(continua)

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Ausência de publicação no blogue....em jeito de desculpa


Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Conto da dona Lili (7) Flagrante


O dr. Daniel sentiu-se mal na xácara e pediu aos filhos Luiz e Gabriel que o levassem de volta a casa. Comera na véspera um vátápá delicioso mas que combinado com muita caipirinha o tinha prostrado, quase sem forças, num cocktail de consequências bombásticas para a barriga.

Chegados a casa, Luiz e Gabriel ampararam o pai a subir os degraus íngremes para o andar dos quartos e no patamar ouviram barulhos estranhos de vozes e risos femininos que vinham de aonde Dani dormia.

Dirigiram-se para a porta e quando a empurraram quedaram-se estupefactos: a empregada, nua, rebolava-se por cima do filho do patrão.

A colcha da cama enrodilhada, a roupa desalinhada e o quarto cheirando a uma mistura de perfume, sexo e comida. Ao lado, no chão, um tabuleiro com restos de uma empada de lebre com duas flutes de champagne e uma garrafa meia cheia de Pommery & Grenot.

Surpreendido em flagrante, Dani olhou para o pai e ouviu uma voz seca dirigir-se a Maria Alberta e dizer-lhe sem contemplações:

- Componha-se e arranje as suas coisas para depois fazermos contas e abandonar de imediato esta casa que não está habituada a estas devassas!

Dani caíra para cima da cama e desolado pusera a cara entre as mãos.

Lembrava-se daquele corpinho roliço entre os seus braços, quando lhe desatara os laços do corpete e tocara, mordiscara e apertara com vigor aqueles peitos saborosos nas suas mãos, os beijos carnais que ela lhe dera, os jogos de amor que com ele fizera, primeiro com as mãos, depois com as pernas e com o resto do corpo num êxtase de entrega como nunca havia conhecido com nenhuma outra mulher, mais parecendo que era um amor reprimido que de repente se vertia sem limites.

O céu na terra!

Os gemidos de prazer que ouvira quando a possuíra bem fundo num orgasmo irreprimível, as torpezas que lhe consentira e que aos dois teria merecido a inquisição, tudo lhe falava da sensualidade e da loucura que nele despontara por Maria Alberta.

Não podia desistir dela, jamais!

O dr. Daniel mandara-a embora e ela no sufoco da partida metera-lhe entre as mãos um papel rabiscado com a morada aonde coabitava com o marido.

(continua)

sábado, 7 de maio de 2011

Carpe Diem


Dans le tourbillon de la modernité, on vit plus souvent au passé sur le divan d’un psy ou au futur de ses obligations professionnelles, qu’au modeste présent. Et si l’on profitait maintenant de ce qui est, au lieu d’embellir ce qui a été ou de fantasmer sur ce qui sera ? Maeve Haran, une ancienne productrice de télévision irlandaise devenue romancière, nous y aide en rappelant dans un ouvrage d’une apaisante simplicité « les petits plaisirs ». Quelques exemples de ces enchantements minuscules :

❤ Se glisser dans des draps fraîchement lavés et repassés.
❤ Acheter du pain à la boulangerie et se rendre compte qu’il est chaud.
❤ Se débarrasser de la paperasse que l’on repoussait depuis des semaines.
❤ Courir derrière le bus et… l’attraper. Le trajet s’en trouve intégralement éclairé.
❤ Feuilleter des catalogues de meubles, de fleurs, d’objets d’art ou de vêtements, il suffit de les regarder pour avoir le sentiment d’avoir tout acheté.
❤ Mettre un chapeau ou des lunettes de soleil qui vous parent d’un soupçon de mystère, et se sentir en un clin d’oeil plus en beauté.
❤ Sortir du bain en s’enveloppant d’une serviette chaude.
❤ À l’ère de l’e-mail, recevoir par la poste une lettre manuscrite.
❤ Vider ses placards.
❤ Prendre un verre avec une amie.
❤ Dénicher enfin une pêche bien mûre.
❤ Tenter une dernière fois d’allumer l’ordinateur en panne et se rendre compte qu’il a la bonté de redémarrer.
❤ Danser tout seul chez soi en se prenant pour Justin Timberlake ou Madonna.
❤ Aller le dimanche matin au marché.
❤ Découper une pastèque en savourant le bruit mat que fait ce fruit en se rendant à votre gourmandise.
❤ Sortir sur le balcon après le dîner et s’imprégner des premières nuits d’été.
❤ Trouver le mot juste pour remettre d’aplomb une phrase qui s’obstinait à claudiquer.
❤ Réparer un objet au lieu de le jeter.
❤ Allumer des bougies pour donner à la maison un air de fête.
❤ Être réveillée par les oiseaux avant même que la sonnerie ne se soit déclenchée.
❤ Monter sur la balance et découvrir que l’on n’a pas pris un gramme.
❤ Regarder le soleil se lever ou se coucher.
❤ Voir ses bagages arriver parmi les premiers à l’aéroport.
❤ Trouver un billet de vingt euros oublié dans une poche.
❤ Sentir la menthe, le basilic et la lavande, qui embaument quand vous les effleurez.
❤ Prendre son petit déjeuner au lit.
❤ Chanter.
❤ Redécouvrir un T-shirt ravissant qui hibernait au fond d’un tiroir.
❤ Réunir une chaussette orpheline avec son alter ego.
❤ Trouver une citation comme celle-ci : «La sagesse suprême est d’avoir des rêves assez grands pour ne pas les perdre de vue pendant qu’on les poursuit.» Francis Scott Fitzgerald.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Conto da dona Lili (6) Atrevimentos


- Maria Alberta, eu conheço o teu passado e quero-te ver feliz. Eu posso ajudar-te a conseguir voltares a ter uma vida gostosa. Queres? – e Dani, pegava nas mãos e fazia-lhe festas mansas e doces.

Tinha dito a Pais da Silva que o patrão precisava dela e o marido não se opusera a que não ficasse em casa nesse dia de folga. Era-lhe completamente indiferente, pois tinha um jogo de batota aprazado na taberna. Só não queria perdê-la: era o seu talismã, agora a sua fonte de rendimento e como bom machão não gostava de ser abandonado.

Maria Alberta tinha-se aperalquitado nessa manhã de Domingo, e quando saíra de casa levava posta uma camisa de cambraia branca aberta e com folhos, deixando ver, generosamente, os seus alvos peitos que cobrira com um xaile enrolado à volta dos ombros, no percurso até à casa do doutor Daniel. Escolhera uma saia curta e leve de tons azuis claros que moldava as formas do corpo e calçara umas sabrinas de coiro fino, deixando entrever o peito rosado do pé, maneirinho e formoso. Tinha finalmente borrifado um pouco de perfume de alfazema, fresco e bem cheiroso.

Cismara toda a noite sobre o verdadeiro sentido daquele convite: Dani, sem os irmãos e o pai, sozinho a dois. Para que precisaria ele dela?

Ao chegar à porta, viu luz na sala e quando entrou, Dani apareceu-lhe a dar os bons dias.

Vestia uma camisa de fino linho, aberta, com os respectivos botões desapertados até meio do tronco, deixando perceber um peito firme com um abdómen bem musculado e tinha posto umas calças apertadas que lhe chegavam até aos joelhos.

Um sorriso aberto e acolhedor. Fora atrás dela até à cozinha, aonde lhe perguntara se queria que lhe servisse o café da manhã.

Ficara muito embaraçada quando ele lhe pegara nas mãos, mas apesar de ter recuado, não as retirou.

Eram umas mãos finas, longas e macias e o perpassar dos dedos na sua pela fê-la arrepiar-se e a precaver-se.

- O sr. doutor diga-me em que lhe posso ser útil, pois para isso vim – respondeu afogueada.

- Nada temas de mim, Maria Alberta. Preciso que me arrumes uma roupa nova que comprei e que também me dês a tua opinião. Tenho-a lá em cima no quarto – disse Dani.

(continua)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Conto da dona Lili (5) O reencontro das primas


- E assim vê a prima como acabei deserdada, acreditando no amor! – disse Maria Alberta, sentada numa cadeira desconfortável da salinha de estar, no rés-do-chão da casa de dona Lili na Amadora.

- E porque veio a prima até Lisboa e logo me encontrou? Ninguém conhece aonde eu moro! Como soube a Maria Alberta da minha existência? – perguntou dona Lili, a quem o conhecimento súbito de que tinha uma prima brasileira cujos pais enriqueceram e gozaram de grandes mordomias, acabando, porém, deserdada, excitava como se pudesse rever-se num dos seus romances de cordel.

- Sirva-se de um pouco de hidromel, é ainda do tempo do meu defunto Arnaldo. Temo que esteja passado. A dona Yvete, a minha vizinha, deixou-me acabar os biscoitos. Não tenho mais nada com que acompanhar, desculpe sim – e dona Lili recostava-se para ouvir as explicações da prima.

- Pois olhe, a sua morada soube-a pelos correios, e a minha tia Gracinda, irmã do meu pai, que acabou os dias em nossa casa lá no Brasil, deixou uns papéis aonde se referia a uma sobrinha de nome Libertária que morava na Amadora – respondeu Maria Alberta.

Quando soube que estava deserdada, Maria Alberta que muito gostava do pai, chorou amargamente e arrependeu-se do gesto tresloucado da sua fuga. Mas era tarde, pois Pais da Silva, o companheiro e depois marido, começou a tratá-la mal.

O dote e a futura herança tinham sido os engodos a que tinha ido quando com Maria Alberta se começara a encontrar e a planear a fuga e o casamento.

Casa modesta num bairro esconso da cidade, sem grande luz e móveis desconfortáveis, comida de pobre e pouco farta, bebedeiras de Pais da Silva com chegadas a desoras cada vez mais frequentes, tornaram o seu dia-a-dia num verdadeiro pesadelo.

Só pensava em fugir, mas Manuel vigiava-lhe os passos. Resolveu então usar de um estratagema: iria trabalhar. Assim sempre ganhava uns cobres, tinha liberdade de movimentos e podia começar a planear o seu regresso à casa paterna.

Pais da Silva achou bem. Sempre era mais dinheiro que entrava para gastar na taberna e podia assim deixar de vadiar pela cidade como pedinte.

Maria Alberta empregou-se a dias em casa de um doutor Daniel, cirurgião no hospital central, viúvo e com 3 filhos homens: Luiz, Gabriel e Dani, o caçoila.

Era uma família acolhedora e Maria Alberta foi bem recebida. Almoçava por lá, arrumava os quartos, limpava as salas e servia à mesa. Tinha uma boa experiência destas tarefas, pois o que agora fazia, tinha observado criadas o fazerem, no passado, em casa dos seus pais.

Ia nos seus 29 anos, com uns belos olhos, uma cara sorridente e um corpo esguio e bem feito, uns seios salientes e atractivos, não fosse ela filha de Cíntia Melão, que tomara este apelido pela mesma razão.

Dani era um rapaz de 28 anos, bem apessoado, com uma tez clara e um nariz bem lançado sobre uma boca bem feita que deixava entrever um sorriso encantador. Trabalhava com o pai como médico internista e era tido como um bom conversador.

Quando foi admitida, o doutor Daniel pediu-lhe referências e ela não pôde deixar de lhe contar o seu passado, pedindo-lhe sigilo.

Fora muito compreensivo e até lhe dissera que se quisesse, podia mudar-se lá para casa para um dos quartos nos arrumos. Maria Alberta, ficara-lhe agradecida mas declinara, dizendo que temia retaliações de Pais da Silva.

Quando servia à mesa, aprumada e em silêncio, ouvia as conversas da família e notara o fino humor de Dani. Sempre que com ele entrecruzava os olhares - por pura casualidade - era como se estivesse a ser observada com um interesse, que ela achava ser mais do que o usual entre patrão e empregada. Notava um discreto sorriso e um brilhozinho nos olhos que à medida que os dias passavam, começou a constatar, aumentava de intensidade.

O doutor Daniel tinha, obviamente, contado aos filhos com quem não tinha segredos, quem Maria Alberta era e desde o início havia como que um respeito e admiração de todos por ela, por se encontrar nesta situação devido aos infortúnios da vida.

- A Maria Alberta, no domingo está livre da parte da tarde? – perguntou Dani, quando regressava do trabalho um fim de dia e se estirava, cansado, num sofá da sala.

- É o meu dia de folga, mas tenho muito que fazer em casa, pois preciso de deixar a lida da semana toda feita para o meu marido – respondeu Maria Alberta, intrigada e num meio sobressalto.

- Ora, ora o seu marido que se arranje! Precisava de si para esse dia. Umas coisas cá em casa, só minhas. O meu pai e os meus irmãos estão para a xácara e eu fico para trás de propósito. Então fica combinado? – disse Dani, numa voz sem margem para discussão.

- Terei então logo, que avisar o meu marido – respondeu a moça, sem o olhar nos olhos, mas muito açodada.

(continua)

terça-feira, 3 de maio de 2011

Conto da dona Lili (4) a fuga de Maria Alberta


Para os membros da família de Celso Pereira os negócios corriam bem. Usufruíam da fortuna amealhada pelo progenitor, composta por vastas propriedades, currais de gado e fazendas e sítios arrendados a inúmeros cultivadores, para além do negócio das padarias que se tinha vindo a multiplicar pela abertura de várias unidades por toda a região sertaneja.

Celso estava frequentemente fora, tratando do alargamento do seu negócio. Os restantes membros da sua família eram a sua esposa, Cíntia Melão, e os seus dois filhos, Maria Alberta e Borba Gato.

Tinham muitos dependentes, criados e trabalhadores de panificação da empresa principal, que habitavam nos baixos da casa grande da xácara.

Preocupava à família o casamento da jovem herdeira Maria Alberta e certamente tinham planos minuciosos para esse casamento, uma vez que estava em jogo a fortuna duramente adquirida; de preferência era necessário mantê-la ou ampliá-la para além de estreitar laços com famílias importantes da região.

Esteve prometida a um doutor Abelardo Couto, mas havendo uma diferença de idades significativa, cedo se desinteressou dele e começou a recusar todos os putativos noivos que o seu pai, subsequentemente, lhe arranjava.

Mais do que satisfazer os desejos do seu afecto e coração, casar era garantir a preservação do património da casa e as alianças de poder comercial com outras famílias de nível social superior.

Em meados de Janeiro daquele ano, Maria Alberta fugiu com Manuel Pais da Silva.

O casal levou duas criadas e algumas jóias e foi-se refugiar na casa do Coroné Álvaro Falcão, inimigo de Celso por razões de política local, que os protegeu na fuga para a cidade.

Uma vez lá, apoiados por outros concorrentes do pai, casaram-se 10 dias depois.

No dia da fuga, Celso Pereira estava fora mas regressou de urgência para assumir o controlo da situação.

Exigiram que as autoridades locais tomassem providências, argumentando que se tratava de uma fuga não consensual, mas antes de um rapto perpretado por um indivíduo de má reputação e de muito baixas origens.

Os inimigos de Celso goraram os seus planos, e assim um assunto de ordem doméstica tornou-se num escândalo público, pois envolvia a partilha de uma das maiores fortunas da região, da qual Maria Alberta era a presuntiva herdeira, visto que o seu pai, deserdara o irmão Borba Gato por ser um desordeiro, bêbado e dissipador dos bens da família.

Acabaria mal, como já sabemos.

Para além dos aspectos económicos (os negócios e o património), também estavam em jogo os códigos morais de uma sociedade sob o manto do catolicismo, que não aceitava uma união conjugal sem os sagrados laços do matrimónio e a aprovação da família.

Quando fugiu, Maria Alberta era ainda menor de 25 anos e estava destinada a um casamento sob o controle do pai, sem possibilidade de escolha; casar era um dever para com as gerações futuras da família, para manter a fortuna e o prestígio ou, como dito por Celso “que tinha que casar segundo a sua qualidade”.

Assim, a sua fuga com um indivíduo de poucas posses pôs em cheque o património famíliar.

Sabida a notícia, Celso tentou por todas as formas impedir ou anular o casamento, para evitar que Pais da Silva tivesse acesso aos bens de Maria Alberta e, por fim, sem o ter conseguido, resolveu também deserdar a filha.

(continua)

domingo, 1 de maio de 2011

Conto da dona Lili (3) Maria Alberta



Os salões da mansão do rico industrial e bem sucedido imigrante português Celso Pereira estavam cheios, como poucas vezes acontecia, naquela noite memorável. Alguns políticos locais, Coronéis, e variados homens de negócios enchiam as salas da casa grande da xácara.

O encanto da reunião estava, entretanto, na revoada de moças e senhoras que rodopiavam pelas salas, e entre as quais se destacava, pela beleza, pela juventude, pela inocência do olhar e dos modos, Maria Alberta, noiva do Dr. Abelardo Couto e filha do dono da casa.

Na sala ao lado, dançava-se. E, entre os pares, o Dr. Abelardo e a noiva, põem-se os dois a conversar:

— Que mãos tens tu, Maria Alberta! — elogia o noivo, maravilhado, apertando os dedos miúdos, quase infantis, da sua prometida.

— Acha-as pequenas? — pergunta a moça.

— Microscópicas!

— Como?

— Microscópicas! — insiste o Dr.Abelardo.

Intrigada com a palavra, que ouvia pela primeira vez, Maria Alberta pede licença por um instante, entra no salão de chá e, com a sua ingenuidade, pergunta ao amigo do pai, um médico local com fama de muito letrado o Dr. Maraz:

— Doutor, o que significa “microscópico”?

— É uma palavra derivada de “microscópio”, Menina! — explica o ilustre fisiologista.

— E o que é “microscópio”? — insiste Maria Alberta, franzindo a testa morena, que os olhos iluminam.

O Dr. Maraz pensa um momento, e, para não perder tempo, explica:

— É um aparelho que faz as coisas crescerem. Compreende?

A menina sorri, agradecida.

De repente, porém, pisca os olhos, franze mais a testa, e corando diz:

— Ahn!...

Morde o dedinho, meio brejeira, meio envergonhada:

— Desavergonhado! Agora é que percebo porque é que ele diz que eu tenho a mão microscópica ...

E saiu correndo, córada, para beijar o noivo.

(continua)