sábado, 25 de setembro de 2010

Tratado de Ateologia por Michel Onfray - Entrevista


O filósofo francês mais lido da actualidade diz que as três grandes religiões monoteístas vendem ilusões e devem ser desmascaradas.

Num tempo em que a religiosidade está em alta, surpreende o livro que se encontra no topo da lista dos mais vendidos em França, à frente até das biografias de João Paulo II: Tratado de Ateologia. Escrito pelo filósofo mais popular da França na actualidade, Michel Onfray, de 46 anos, a obra é um ataque forte ao que o autor classifica como "os três grandes monoteísmos".

Segundo Onfray, por detrás do discurso pacifista e amoroso, o cristianismo, o islamismo e o judaísmo pregam na verdade a destruição de tudo o que represente liberdade e prazer: "Odeiam o corpo, os desejos, a sexualidade, as mulheres, a inteligência e todos os livros, excepto um". Essas religiões, afirma o filósofo, exaltam a submissão, a castidade, a fé cega e conformista em nome de um paraíso fictício depois da morte.

Para defender esta argumentação, Onfray valeu-se de uma análise detalhada dos textos sagrados, cujas contradições aponta ao longo de todo o livro, e do legado de outros filósofos, como o alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), que proclamou, numa célebre expressão, a "morte de Deus". O filósofo escreve em linguagem acessível, a mesma que emprega ao leccionar na cidade de Caen, no norte da França. Ali criou uma "universidade popular" que atrai milhares de pessoas a palestras diárias e gratuitas sobre filosofia, artes e política. Gravadas pela rádio pública France Culture, as aulas de Onfray são um sucesso de audiência. Os fãs consideram-no um sucessor de Michel Foucault (1926-1984), o mais influente filósofo francês do século passado. Nos seus livros, Onfray propõe o que chama de "projecto hedonista ético", no qual defende o direito do ser humano ao prazer. Uma de suas obras, A Escultura de Si, ganhou em 1993 o Prêmio Médicis, o mais importante da França para jovens autores. Onfray também tem detractores, que o acusam de repetir ideias ultrapassadas. Em dois meses o seu Tratado vendeu 150.000 exemplares. De seu escritório em Argentan, Onfray concedeu a seguinte entrevista:


Questão (Q) - Na sua opinião, só um ateu é verdadeiramente livre?

Onfray - Só o homem ateu pode ser livre, porque Deus é incompatível com a liberdade humana. Deus pressupõe a existência de uma providência divina, o que nega a possibilidade de se escolher o próprio destino e inventar a nossa própria existência. Se Deus existe, eu não sou livre; por outro lado, se Deus não existe, posso-me libertar. A liberdade nunca é dada. Constrói-se no dia-a-dia. Ora, o princípio fundamental do Deus do cristianismo, do judaísmo e do Islão é um entrave e um inibidor da autonomia do homem.

(Q) - A que atribui o sucesso do seu livro num momento em que há tanta discussão sobre a religiosidade?

Onfray - Acho que muitos franceses esperavam uma declaração claramente ateia. As primeiras páginas de jornais e as capas de revistas sobre a recuperação da religiosidade, a polémica sobre o direito de usar ou não o véu muçulmano nas escolas leigas, a oposição maniqueísta entre um eixo do bem judaico-cristão e um eixo do mal muçulmano, a obrigação de escolher de um lado entre Obama e Osama bin Laden, a religiosidade dos políticos exposta na imprensa, o crescimento do Islão nos subúrbios franceses, tudo isso contribuiu para uma presença monoteísta forte no primeiro plano dos media. O meu livro provavelmente funciona como um antídoto a este estado de coisas, pelo menos em França. Está a ser traduzido para outras línguas.

(Q) – O seu livro defende um ateísmo "fundamentado, construído, sólido e militante". Isto quer dizer que é preciso convencer as pessoas da inexistência de Deus?

Onfray - Isto quer dizer que, quando uma pessoa não se contenta apenas em acreditar estupidamente, mas começa a fazer perguntas sobre os textos sagrados, a doutrina, os ensinamentos da religião, não há como não chegar às conclusões que eu proponho. Trata-se de não deixar a razão, com R maiúsculo, em segundo plano, atrás da fé - e sim dar à razão o poder e a nobreza que ela merece. Essa é a missão, a tarefa e o trabalho do filósofo, pelo menos de todos os filósofos que se dêm ao respeito.

(Q) - A destruição dos três grandes monoteísmos equivale a mostrar que o “rei vai nu”, como na fábula de Hans-Christian Andersen?

Onfray - Sim. É preciso mostrar que o rei está nu, deixar bem claro que o mecanismo das religiões é o de uma ilusão. É como um brinquedo cujo mistério tentamos decifrar partindo-o. O encanto e a magia da religião desaparecem quando se vêem as engrenagens, a mecânica e as razões materiais por detrás das crenças.

(Q) - Cita constantemente trechos do Corão, da Bíblia e da Tora para apontar contradições. Por que razão, se em muitos casos esses trechos nem são mencionados pelos religiosos na defesa das suas convicções?

Onfray - Os sacerdotes limitam-se a usar apenas um punhado de palavras, textos e referências, sempre postos em evidência porque são aqueles trechos que permitem assegurar melhor o domínio sobre os corpos, os corações e as almas dos fiéis. A mitologia das religiões precisa de simplicidade para se tornar mais eficaz. Fazem uma promoção permanente da fé em detrimento da razão, da crença diante da inteligência, da submissão ao clero contra a liberdade do pensamento autónomo, das trevas contra a luz.

(Q) – No seu livro cita contradições entre a pregação da paz e a da violência. Pode dar os exemplos mais marcantes desta situação?

Onfray - O famoso sexto mandamento da Tora ensina: "Não matarás". Linhas abaixo, uma lei autoriza a matar quem fere ou amaldiçoa os pais (Exodo 21:15 e adiante). Nos Evangelhos, lê-se em Mateus (10:34) a seguinte frase de Jesus: "Não vim trazer a paz, e sim a espada". O mesmo evangelista afirma permanentemente que Jesus traz a doçura, o perdão e a paz. O Corão afirma que "quem matar uma pessoa sem que ela tenha cometido homicídio será considerado como se tivesse assassinado toda a humanidade" (quinta sura, versículo 32). Mas ao mesmo tempo o texto transborda de incitações ao crime contra os infiéis ("Matai-os onde quer que os encontreis", segunda sura, versículo 191), os judeus ("Que Deus os combata", nona sura, versículo 30), os ateus ("Deus amaldiçoou os descrentes", 33ª sura, versículo 64) e os politeístas ("Matai os idólatras, onde quer que os acheis", nona sura, versículo 5).

(Q) - O livro ataca com virulência particular o apóstolo S.Paulo, descrevendo-o como um histérico. Por quê?

Onfray - Basta ler os Actos dos Apóstolos, nos trechos que descrevem a conversão de Paulo, e conhecer um pouco de psiquiatria, ou ter um manual de psicologia ao alcance da mão, para ver como os sintomas da visão que originou a sua conversão coincidem com os descritos pelos especialistas como sendo histeria: perca de tónus muscular, queda, cegueira momentânea, etc. Ao referir-me a Paulo, eu não emprego o termo neurose como um insulto de carácter moral, mas como um diagnóstico que pode ser estabelecido por um psiquiatra.

(Q) - Há uma diferença entre ser contra as religiões e não acreditar na existência de Deus?

Onfray - É possível acreditar em Deus e viver sem religião. Mas não conheço religião que viva sem Deus. Trata-se do mesmo combate, ou seja o verso e o reverso da mesma medalha.

(Q) - Mas não são poucos os que sustentam que a necessidade de Deus é inerente ao ser humano. Há quem acredite que essa necessidade é genética.

Onfray - Essa necessidade é cultivada culturalmente. É claro que não existe. Muito menos geneticamente. Essa é uma ideia ridícula. Não há nada no cérebro além daquilo que é posto nele. Já se viu alguma criança - imagem do que pode haver de mais natural - nascer acreditando em algum Deus ou em alguma transcendência? Deus e a religião são invenções puramente humanas, assim como a filosofia, a arte ou a metafísica. Essas criações, é bem verdade, respondem a necessidades, como a de esconjurar a angústia da morte, mas podemos reagir de outra forma: por exemplo, com a filosofia.

(Q) - Como explica o facto de muitos cientistas, diante da impossibilidade de explicar a imensa complexidade do universo, se voltarem para a hipótese da criação divina?

Onfray - O recurso a Deus e à transcendência é um sinal de impotência. A razão não pode tudo. Deve ser consciente das suas possibilidades e limites. Quando ela não consegue provar alguma coisa, é preciso reconhecer essas limitações e não fazer concessões à fábula, ao pensamento mitológico ou mágico. A ideia da criação divina é uma espécie de doença infantil do pensamento reflexivo.

(Q) - Como filósofo ateu, como encarou a forte emoção popular pela morte do Papa João Paulo II?

Onfray - Tamanho fervor deve ser relacionado com o facto de que João Paulo II foi de facto o primeiro "papa catódico", o primeiro Sumo Pontífice da era da comunicação de massas. Foi o homem mais filmado do planeta. Logo, foi o maior portador da aura que os media conferem. A maioria das pessoas tem um grande fascínio pelos ícones eleitos pelos media e acredita mais neles do que na verdade física. Daí a estranha sensação quando a TV prova que por trás daquela imagem divinizada havia alguém bem real, de carne e osso. Isso ficou demonstrado, na morte do papa, pelo uso espectacular da exposição do cadáver e pela criação de uma reacção histérica amplificada pela transmissão televisiva.

(Q) - Retoma casos recentes e antigos em que o papel da Igreja Católica não foi dos melhores: ataques a Galileu, silêncio diante do holocausto ou do genocídio em Ruanda. Mas é possível encontrar outros tantos exemplos de bons momentos do catolicismo. Isso não mostra que o problema não são as religiões e sim os homens que as interpretam e representam?

Onfray - Não me proponho escrever uma resposta ao livro O Génio do Cristianismo (obra de 1802 do escritor francês François-René de Chateaubriand, que refutava os filósofos anti-religiosos de seu tempo). O que quero é mostrar que as religiões, que dizem querer promover a paz, o amor ao próximo, a fraternidade, a amizade entre os povos e as nações, produzem na maior parte do tempo o contrário. Não me parece muito digno de interesse que os monoteísmos possam ter gerado o bem aqui ou acolá. Afinal, é a isso mesmo que eles se dizem propor. Não há motivo para espanto. Em compensação, que se devam a eles tantas barbaridades terrenas, extremamente humanas, parece-me muito mais importante como prova da inanidade das doutrinas.

(Q) - Críticos católicos alegam que o seu livro nada fez senão repetir antigos argumentos contra a religião. Quais são seus argumentos novos?

Onfray - Não se pode fazer muito mais, a não ser dizer e redizer o que é verdade há muito tempo. E repetir que os cristãos têm pouca moral para me reprovar por dizer antigas verdades, quando eles mesmos propagandeiam erros ainda mais antigos.

(Q) - Não se pode negar que a religião proporciona valores morais e éticos a muitas pessoas que de outra forma os não teriam. Isso, por si, não bastaria para justificar a existência das religiões?

Onfray - Se não houvesse alternativa, certamente. Mas há. A filosofia permite a cada um a apreensão do que é o mundo, do que pode ser a moral, a justiça, a regra do jogo para uma existência feliz entre os homens, sem que seja preciso recorrer a Deus, ao divino, ao sagrado, ao céu, às religiões. É preciso passar da era teológica à era da filosofia de massas.

(Q) - Acha que um dia o mundo será predominantemente ateu?

Onfray - Não. A fraqueza, o medo, a angústia diante da morte, que são as fontes de todas as crenças religiosas, nunca abandonarão os homens. Por outro lado, é preciso que alguns espíritos fortes, para usar uma expressão do século XVII, defendam as ideias justas. A questão é converter novos espíritos fortes. Só isso já seria muito.

(Q) - Quando e como se tornou ateu?

Onfray - Até quando me consigo lembrar, sempre fui ateu, a não ser na infância, quando acreditava na mitologia católica como se acredita no Pai Natal ou nas lendas. As histórias contadas pelo catolicismo têm tanto valor como estas. Está ao mesmo nível dos contos da carochinha, em que os animais conversam e os ogres comem criancinhas. Logo que um embrião de razão habitou a minha mente, nunca mais me importei com esse pensamento mágico - que só serve, justamente, para as crianças.

1 comentário:

  1. Com alguns exageros ou superficialidades, tem bastante razão em algumas das críticas às três religiões monoteistas mas, quanto à não-existência de Deus ou à possibilidade de uma filosofia ateia ser a solução para uma humanidade mais harmoniosa, a sua conversa ou argumentação deixa muito a desejar...

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