sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

No avião para Pequim


No avião para Pequim, sentou-se ao meu lado um francês. Durante a primeira meia-hora, cada um entreteve-se em silêncio. Eu pus em dia a leitura dos jornais económicos e do Expresso e ele esteve a jogar no iPad.

Reparei que olhava intrigado para o meu lado varias vezes e sobretudo para os jornais que eu estava a ler.

Às tantas perguntou-me se eu falava francês e eu respondi-lhe que sim. Fez um ar mais prazenteiro. Veio a pergunta que tinha adivinhado: em que língua estava eu a ler os jornais?

Disse-lhe que era em português.

Era bem educado e muito civilizado e começámos a conversar. Gabou o meu francês, com especial ênfase para a pronuncia e eu disse-lhe que em minha casa, em pequenos tínhamos tido uma nany inglesa e uma professora de francês.

Perguntei-lhe em que se ocupava e contou-me a sua vida fascinante que vos passo a descrever:

- era filósofo, chercheur que eu traduzo por pesquisador, especialista da civilização khmere, historiador, director da Escola Francesa do Extremo-Oriente, etc.

- eram-lhe mais familiares os mosteiros do Cambodja do que as administrações de empresas.

- teve um avô que fez viagens em missões culturais ao Tibete, tornando-se depois professor de tibetano e de filologia tibetana na Escola de Altos Estudos em Paris.

- aos 5 anos levavam-no a visitar as vitrinas das salas aonde se encontravam cálices cavados em tíbias e cortes de crânios humanos. Ele confessou-me que ficava fascinado e ao mesmo tempo sentia uma espécie de atracção e repulsa. Muito inquietante!

- tudo isto o marcou. Ao interromper a tese de filosofia que não progredia, procurou uma outra actividade. O departamento de línguas para a Ásia Oriental, acolhia inscrições para chinês e japonês mas havia muitos inscritos e poucas vagas. Não havia ninguém para o cambojano!

- inscreveu-se e começou a aprender, mas com todas as dificuldades inerentes. O país estava totalmente fechado ao mundo exterior e nas mãos dos
Vietnamitas. Aprendeu assim a falar de uma maneira livresca....comentou-me com muita humildade.

- no fim de contas disse-me que sabia dizer " gostaria de consumir uma sopa" e não "quero comer uma sopa", como seria o correcto!

-obteve uma licenciatura em cambojano ao fim de 10 anos e quis ter um mestrado e assim partiu para a Tailândia para os campos dos khmer vermelhos.

- quando anos mais tarde começou o degelo da Indochina comunista, foi contratado para duas missões no Cambodja - organizar um programa de pesquisas, e da conservação de manuscritos e abrir um liceu francês no Cambodja.

- o seu interlocutor era o Governo do Cambodja posto pelo Vietname. Em Phnom Penh o Ministro da Cultura deu-lhe um pavilhão no interior do pagode de Prata, num recinto a que chamavam " o museu do ex-palácio real e do feudalismo"!

- ele tinha as chaves do Palácio Real! Durante anos foi o único ocupante. Uma espécie de castelo abandonado com ervas altas por todo o lado.

- com o regresso do Rei Sihanouk ao poder em 1991, permitiu-lhe lá manter-se e encarregou-o da manutenção e da conservação dos manuscritos preciosos.

- dizia- se em ar de graça, contou-me ele, que o país estava dividido em três tipos de zonas: as minadas, as provavelmente minadas e as provavelmente não minadas! Quando mandava uma carta para Bangkok acabava por passar por Moscovo para controlo politico! O regime comunista instalado pelos Vietnamitas era absurdo no seu conjunto, mas mesmo assim nada se comparava ao KGB.

- o seu trabalho era o de recuperar os manuscritos preciosos sobre a historia do Cambodja. Não havia informações sobre as destruições selvagens. Visitou os mosteiros de Phnom Penh. Os monumentos de Angkor tinham sofrido pouco por parte dos khmer vermelhos e da ocupação vietnamita, mas os manuscritos tinham sido destruídos em proporções extraordinárias, em cerca de 98%. Com isto não só a memória como a cultura tinham desaparecido.

- o Cambodja é um pais bastante curioso, comentou-me, pois conta monumentos dos séculos VIII ou IX e também dos séculos XVIII e XIX. A única coisa que ligava o Cambodja antigo ao moderno eram os documentos - a maior parte religiosos - copiados e recopiados durante séculos, conservando-se nas bibliotecas dos pagodes.

- durante vinte anos , localizou, restaurou, registou, micro filmou cerca de 160.000 fichas, numerou-as e conseguiu reconstituir uma imagem bastante plausível da literatura do Cambodja.

- num estado de desorganização politica e económica desde o século XIV, o Cambodja, contrariamente à Tailândia, Birmânia ou Ceilão, nunca teve um poder central que impusesse regras jurídicas fixas. É assim um repositório magnifico de tradições, que continuam bem vivas ainda, acrescentou.

- em Paris, disse-me, encontram-se no museu da Arte Oriental, peças excepcionais, tais como as jogadoras de pólo, objectos funerários Tang de uma enorme sensibilidade - uma estátua com uma expressão muito doce da colecção Khmer, uma representação genuína da serenidade, concluiu.

Entretanto, ia escrevendo tudo isto no meu iPad, e o sono chegou para ambos.....

Combinei escrever-lhe e quem sabe, um dia destes, partir com ele e um grupo de amigos interessados na descoberta de um outro Cambodja!

Entretanto, este foi só o relato da viagem do avião....parece-me que ao sobrevoar a China novas descrições podem surgir, e eu escrevo sempre a comentar as minhas viagens.

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