segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Caim

Eva estava desolada, pois Adão tinha morrido.

Fora muito comovente ver para além dos seus filhos, Abel e Caim, todos os amigos de Adão, o Rei Leão, as panteras, as chitas, os gamos, os saguis, as girafas, os hipopótamos, os bisontes, enfim todos os animais da selva que tinham vindo de todos os lados numa grande manifestação de respeito pelo Homem.

Claro que a serpente viscosa e tentadora, tentou juntar-se ao grupo, mas o Rei dos Elefantes, dera-lhe uma trombada que a tinha mandado para longe.

Eva tentava lembrar-se daquele Homem a quem vira a sua sorte ligada no paraíso, aonde viviam, sem a noção de tempo e com a promessa da imortalidade e da infinidade e perguntava-se se teria sido porventura aquele incidente com o seu Deus que tornara Adão mortal e em consequência, tanto ela como os seus filhos.

Enquanto cuidava de Caim, pois Abel já era mais crescido e alimentava-se de mel e de frutos silvestres, de raízes de ervas e de leite de cabra, reviveu esses momentos em que vira pela primeira vez o seu Deus tão zangado…..talvez não fosse a palavra certa, inconsolavelmente desiludido com ambos.

Era numa daquelas tardes tão bonitas de luz e de tranquilidade no éden.

- Eva, temos tudo para sermos felizes – disse Adão enquanto acariciava o corpo dela que estava nua e ao seu colo, estendida entre os seus braços. Temos o nosso Deus, temos os animais por companhia que nos obedecem, respeitam e nos servem num equilíbrio perfeito. Conhecemos o prazer sem limites e não temos contrariedades.

Levantaram-se e aproximaram-se de um pomar cujo acesso lhes tinha sido interdito por Deus e aonde havia uma macieira, e Adão preparava-se para colher uma maçã que estava pendurada ali à mão.

- Este pomar foi-vos proibido pelo vosso Deus para que aqui viessem e dele desfrutassem – disse a serpente, brilhante nas suas escamas e coliante entre as ramadas, deslizando até perto deles.

- O que dizes? – perguntou Adão. É só uma maçã, está calor e é refrescante e apetece-nos comê-la.

- O vosso Deus deixa-vos andar por todo o lado e só neste pomar vos interditou a presença. Parece que quem comer destes frutos, adquire conhecimentos iguais ao do Criador.

Adão recuou e preparava-se para voltar para trás, quando Eva, enroscando-se no seu corpo, lhe sussurrou ao ouvido:

- O meu Homem, tem medo de conhecer o segredo de Deus? Ficarias igual a Ele, com tudo o que Ele sabe e nos tem proporcionado de bom, de belo, de eternidade, de poder. – disse Eva.

- Mas Eva, o nosso Deus é nosso amigo, quando contacta connosco tem orgulho em nós, por termos sido a obra da sua criação perfeita, infinita e sem limites e temos tudo quanto precisamos, queremos e desejamos neste paraíso imenso. Somos seres superiores aos animais e dominamo-los. Não há mais ninguém entre nós e o nosso Deus.

- A Eva tem razão. – disse a serpente. Já pensaste porque será que Deus vos esconde este pequeno pomar? Deve ser aqui que está a fonte do Seu poder, a explicação para a vossa existência, o controlo de todo o Universo. Vá lá, também só um pequeno acto de desobediência não vos causará dano. Ainda por cima se o fizerem escondidos, por baixo dos ramos da macieira, Ele não o saberá. Quem sabe se não está nesse fruto a fonte do conhecimento? – e a serpente enroscava-se cada vez mais ao ramo de onde pendia a maçã apetitosa e singela.

- Não vou desobedecer ao meu Deus – disse Adão. Eva, vamo-nos daqui pois a serpente está-nos a tentar desafiar uma proibição do nosso Deus! Afinal temos tudo o que nos apetece, excepto o desfrute deste pomar a que por razões que só o nosso Deus sabe, não podemos aceder.

- Adão, só uma maçã, aquela tão bonita e apetecível perto da serpente. Está escondida pela ramagem e podemos comê-la sem Deus nos ver.

Adão foi chamado por Deus que disse a ambos para cobrirem a sua nudez, pois tinham sido maculados pela desobediência e assim tornados criaturas não mais semelhantes à imagem do seu Deus e Criador.

Eva lembra-se de ouvir Deus irado perguntar a Adão porque o tinham desiludido ao quererem tornar-se iguais a Ele, quando tinha grandes planos para eles e até o de partilharem a Sua Divindade.

Pela primeira vez Eva sentiu sensações estranhas, de medo, de culpa, de sofrimento – a dor por contraposição ao prazer que até ali sempre sentira – e tinha visto Adão aniquilado pelo acto que fizera e ambos não tiveram mais notícias de Deus, durante….muito tempo. Esta foi uma noção que passaram a ter, a de seres finitos, no espaço e no tempo.

Deus só lhes apareceu muitas luas e sóis depois, e andaram pela Terra perdidos e o paraíso deixou de ser tão viçoso e vieram as estações com as chuvas, o frio, o calor e a amenidade da Primavera e do Outono.

Ao manifestar-se de novo, chamou-os aos dois e sentiram que era outra vez o Deus que os amava.

E Deus disse-lhes que os planos iniciais tinham sido alterados pela soberba, desobediência e falta de aceitação das condições acordadas e que tinha novos planos para eles. Iriam ser os autores de gerações e gerações de outros seres humanos e que um dia e ao contrário do previsto que era a eternidade sem sofrimento, dor e morte seriam remidos por um seu enviado que viria para salvar a Humanidade e voltar a estabelecer o equilíbrio, a alegria e a partilha da visão eterna da felicidade de Deus.




Adão recompusera-se e com Eva descobriram partes do corpo que até então não tinham explorado e tornaram-se complementares um do outro.

O prazer passou da inspiração única e absoluta de Deus, para um conjunto de sensações que estimulavam o desejo de estarem juntos e trocarem afeições em contraposição ao de antigamente de mera dominação dos animais e de serem servidos sem distinção do papel de cada um.

Eva, sentira que Adão lhe imputara em exclusivo aquela cedência dos dois às palavras insinuantes e perturbadoras da serpente, mas nunca mais tinham abordado o assunto entre si.

Tinha nascido primeiro Abel e depois Caim. Adão, desde logo se entregara ao acompanhamento e crescimento do primogénito e Eva, porque ficara mais com a guarda de Caim, criara com ele uns laços de dependência, a que não conseguia encontrar uma explicação. Perturbava-a, dava-lhe o amor de mãe e via-o crescer mas era como se encontrasse nele um prolongamento da imagem e personalidade de Adão.

Abel era manifestamente um filho do seu pai, afável, cordato e sabendo com Adão arbitrar as diferenças que também no mundo da selva tinham ocorrido depois do desencontro com Deus.

Havia os fortes e os fracos, os predadores, a morte como consequência da linha de dependência de sobrevivência de uns para com os outros e a tudo ambos se iam adaptando e dando sinais de serem ainda a raça superior dominante.

Deus rareava nos seus contactos e para a pequena família a noção de tempo passara a ser uma realidade.

Adão estava menos novo e tanto Abel como Caim iam crescendo a olhos vistos.

Eva sentia-se muito bem com o seu corpo e tinha a noção da harmonia das formas apesar do tempo que passava.

Caim, era de facto um perturbador do equilíbrio da natureza: juntava-se aos animais mais perigosos, aos mais traiçoeiros e aos mais ousados e metia-se em rixas, sabendo que apesar de haver sempre vencidos e vencedores, talvez por ser humano, no último minuto abandonava os primeiros aliados e deixava-os à sua sorte.

Era Abel quem dirigia a vida da família e assegurava o alimento, o abrigo e a defesa contra os animais ferozes.

Caim fora sempre desobediente: saía nas tempestades, desaparecia durante dias causando preocupações a Eva e a Abel, e voltava sempre sujo, com traços de lutas com animais a que comprovadamente vencera.

Quando recebia as críticas de Abel corroboradas pelas de Eva, estranhamente amansava com as da mãe e sentia ódio pela autoridade e a certeza da razão que emanava de Abel.

Davam-se entre os dois sem sentimentos especiais de afeição, um reconhecendo com penosidade ao outro poderes de substituição da autoridade paterna que desaparecera e o outro sentindo uma obrigação-dever de cumprir aquilo que insítamente herdara do pai, mas sem qualquer especial fervor ou dedicação.

Eva descobrira Caim, por várias vezes escondido, olhando para o seu corpo nu quando se preparava para deitar, mas não sentiu qualquer perturbação.

Deus dissera-lhes que tinham que crescer e multiplicar-se para encherem a Terra de descendentes com vista ao plano que mencionara de enviar um Salvador para a Humanidade.

Eva tinha dado à luz, de Adão, os seus dois filhos e como pais foram ambos iguais e diferentes entre si mas complementando-se.

Nunca tinha pensado como Deus quereria que nascessem novos filhos dos seus filhos pois Adão não estava mais.

Caim tinha experimentado com macacas fêmeas alguns gestos sexuais a que a sua natureza lhe impelira ao vê-las com os machos na prática do acasalamento, mas sabia que havia uma diferença entre o corpo de Eva e o delas e cada dia que passava rondava a mãe, com temor e hesitação, pois sem saber explicar, desejava praticá-los com ela.

Espiava-a quando a via nua no riacho e ao acostar-se à noite, reparara nos seios cheios e grandes, na pele macia do corpo, na boca carnuda, nos olhos brilhantes, no cabelo tão longo que quase a cobria e nas zonas roliças do fim das costas, firmes e proporcionadas.

Sentia uma especial atracção à frente pela zona mais macia entre as pernas, que já, entretanto, experimentara com as macacas copiando o que vira os machos fazer e desejava ardentemente aproximar-se de Eva e repetir o que lhe dera tanto prazer.

Abel, tal como o seu irmão Caim, desejava a mãe e decidira vigiar o irmão, pois sentia nele exactamente o mesmo e achava-se com um direito de primazia.

Uma noite, Eva ia acostar-se e sentiu gestos perto de si. Devagar parou de se mexer e ouviu um respirar ofegante mais próximo e constatou que era Caim que em silêncio a observava e cada vez mais se aproximava.

Abel regressava de mais uma expedição para trazer alimentos para casa e ao chegar mais perto sentiu gemidos e ruídos semelhantes aos que experimentara quando forçara macacas a consigo acasalarem.

Não teve dúvidas que era Caim e Eva fazendo aquilo que a ele lhe era devido e invade o espaço de rompante e avança para Caim disposto a matá-lo.

Dois rivais lutando até à morte pela sua presa. Eva estava suspensa e em silêncio sem intervir.

Caim, mais ágil nas lutas a que estava habituado com animais ferozes e matreiros, provoca Abel para uma luta de corpo a corpo que só podia ter como desfecho a morte de um dos contendores.

Eva, vivia com Caim e já tinha dado à luz numerosa descendência e tanto Adão como Abel não eram mais do que uma nebulosa memória do seu passado.

MNA

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