segunda-feira, 21 de março de 2016

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Rosé

Quando eu era jovem, a ideia de beber vinho rosé era o cúmulo da possidoneira. Hoje já não é. Aliás hoje já ninguém dá importância (espero!) a esse conceito ridículo do possidónio, que era um papão insuportável nos anos a seguir ao 25 de Abril, um fantasma do Antigo Regime ou, melhor, uma galinha decapitada que, grotescamente, ainda se movia – apesar de morta. Paz à sua alma.

Mas, naquele tempo, era algo (palavra possidónia) que nos acabrunhava (idem). Sobretudo para pessoas como os meus pais (recém-chegados, graças à elegância e inteligência próprias, ao mundo do bom gosto), era vital interiorizar todas as regras de comportamento dos não-possidónios, regras que eles transmitiram a mim e à minha irmã, criando assim uma esquizofrenia que caracterizou de forma caricata os meus primeiros vinte anos de vida – até ir para a universidade onde, rodeado de “possidónios”, comecei a perceber que tanto o vocabulário como a pronúncia do português sempre têm alguma variedade, graças a Deus.

Por outro lado, também percebi que, fora do círculo de intelectuais finos e de aristocratas literários que eram os amigos dos meus pais, havia muitas outras pessoas que valia a pena conhecer, independentemente de tratarem os filhos por tu, darem dois beijinhos e outras “possidoneiras” do género.

Sobretudo fui percebendo ao longo da minha vida que as regras herdadas do bom gosto (na fala, na interacção social, na decoração, na comida, nos vinhos, etc.) não eram dogmas imbuídos de infalibilidade papal, mas apenas opiniões subjectivas que tinham adquirido o estatuto de dogmas por isso ser um meio útil para manter à distância os não-iniciados.


No entanto, a antiga axiologia do possidónio era o mais perfeito exemplo dos perigos de se tomar a nuvem por Juno. É que, vistas de fora, de forma clínica e fria, as regras do comportamento “bem” não eram mais que um código combinado por um grupo. Sem qualquer valor intrínseco. Por isso seria disparate saltar para a conclusão de que quem dá só um beijinho e trata os filhos por você só por isso está habilitado para se pronunciar com infalibilidade sobre questões de gosto. Dar um beijinho é intrinsecamente mais “bonito” do que dar dois? A palavra “lábio” é intrinsecamente mais “feia” do que “beiço”? São códigos combinados, apenas. Sem qualquer outro valor.


Seja como for, o rosé era, de facto, a morte social. Aliás, naquele tempo mais ou menos tudo o que participava da cor “pink” era automaticamente possidónio. O que primeiro me alertou para o relativismo deste tipo de dogma foi conhecer amigas e amigos ingleses que, no seu país, pertenciam à chamada classe social “alta”. As regras, aí, eram totalmente diferentes; muitas vezes opostas. Em Inglaterra, o vinho rosé era chique: isso está, de resto, nos livros de Sacheverell Sitwell (neto do Duque de Beaufort, portanto da mais alta aristocracia da Europa). Um prato em porcelana de Sèvres do reinado de Luís XV (que vale o seu próprio peso em ouro) era considerado possidónio em Portugal; em Inglaterra, era o máximo do bom gosto. Sendo o prato o mesmo, como é que dois grupos aristocráticos, ambos auto-proclamados donos do bom gosto, podiam reagir de forma tão oposta? O terror português das cores (“tudo pintado de branco!”) não era partilhado pelos iluminados do bom gosto em Inglaterra, que se atreviam a pintar as suas salas e casas-de-jantar de amarelo, de lilás, de cor-de-rosa e sabe Deus que mais. Foi uma lição filosófica, pois eu nunca tinha sido obrigado, de modo tão cortante, a perceber a pura arbitrariedade das regras do gosto – área onde não há verdades absolutas: apenas opiniões subjectivas. Gostas de rosé – qual é o mal? Adoras porcelana de Sèvres – e depois?


Na verdade, não gosto especialmente de rosé; isto é, não desgosto, mas não me apaixona. Mas adiro com paixão à estética do reinado de Luís XV (como à do românico, do gótico, do Pártenon, de Matisse, n’importe): na arte há tantos paradigmas possíveis de beleza; uns tocam-nos, outros não. Para mim, Ange-Jacques Gabriel é um arquitecto muito mais interessante do que Siza ou Souto, mas isso é o meu gosto: não é nenhum dogma de fé. Quanto às cores que denotam “bom” ou “mau” gosto: actualmente tenho uma sala pintada de branco, mas quando comprei a minha casa de betão armado com vidros duplos, pintei a sala de cor-de-rosa. Os meus amigos ingleses diziam “what a marvellous colour!”; os portugueses, “foste tu que escolheste esta cor?”

Claro que, como mero professor universitário, nunca tive nem terei dinheiro para ter pratos do reinado de Luís XV, mas vivo perfeitamente bem sem eles – aliás, acho que o lugar deles é justamente no museu. Quando vou a Lisboa, ainda vejo pessoas a dar um beijinho e a tratar os filhos por você, ao que, da perspectiva da minha nova identidade coimbrã, acabo por achar piada. Eu próprio (confesso) também dou um beijinho às amigas de antigamente e trato por você (confesso) os filhos delas, que conheço desde que nasceram. Não o faço por acreditar no dogma de uma classe social a que não pertenço, mas por achar vagamente divertido. Mas o mais divertido é sentar-me nas belas casas-de-jantar impecavelmente pintadas de branco, com as suas pratas e porcelanas da Companhia das Índias, e ver à minha frente um copo de vinho rosé. Qualquer dia vai ser chique dar dois beijinhos e tratar os filhos por tu. Nas questões de gosto, é tudo tão arbitrário.

O Lugar Supraceleste, Livros Cotovia, 2015. por Frederico Lourenço

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