quinta-feira, 27 de novembro de 2014

in dubio pro reo

  1. José Sócrates foi detido, e encontra-se em prisão preventiva. Tal resultou de uma investigação promovida pelo DCIAP, organismo judiciário competente, com a ajuda das polícias de investigação. Da averiguação resultaram uma série de elementos que levaram a que um Juiz de Instrução Criminal considerasse que havia indícios suficientes para convocar o ex-primeiro-ministro e pessoas suas próximas para um Interrogatório. O Juiz entendeu ainda haver razões para manter Sócrates sob prisão preventiva, com base em elementos que, nos seus contornos completos, nos são desconhecidos.
  2. José Sócrates é, para o processo penal e para a ordem jurídica, inocente, até que seja condenado pelo respectivo Tribunal. Esta presunção da inocência – do latim, in dubio pro reo (latinismo que tem andado na boca de muita gente) – não é, em qualquer caso, inilidível, ficando aliás ferida ao longo do processo, desde logo, quando sobre o indiciado recaem suspeitas. A presunção da inocência, sendo um elemento central do funcionamento processual penal, não pode – nem deve – impedir que haja juízos de apreciação, face ao conteúdo e relevância das suspeitas. A suspeita é o ponto de partida para uma clarificação, essencial, que afaste ou confirme os factos e/ou elementos que lhe servem de base. Assim, as suspeitas, ou são afastadas – levando a um arquivamento do processo – ou são reforçadas, devendo o Juiz de Instrução optar pela Acusação e consequente Julgamento.
  3. Até à Acusação ou Arquivamento, o processo encontra-se em “Segredo de Justiça”. O Segredo de Justiça, note-se, existe, não para salvaguarda do indiciado/réu, mas para garantir o sucesso da investigação. O Segredo de Justiça não é na nossa ordem jurídica um princípio absoluto, cabendo a quem dirige o procedimento/processo decidir que elementos devem ou não ser do conhecimento geral. O Segredo de Justiça é assim instrumental da investigação, e não um valor em si, não fazendo qualquer sentido a forma como tanta gente rasga as vestes em sua defesa.
  4. Tal não significa que as sucessivas iniciativas judiciais não devam estar devidamente fundamentadas; acontece é que, nem sempre, esses fundamentos devem ser do conhecimento público, porque se receia que isso possa prejudicar a investigação e a necessária clarificação.
  5. Em processo penal, como em tantas coisas da vida, muitas vezes tudo se perde por se “colocar a carroça à frente dos bois”. Num caso como aquele com que nos deparamos, há que ter a noção reforçada que as decisões não são seguramente fáceis, e que a escolha dos diversos timings é matéria profundamente sensível. Será que há fundamentos suficientes para que Sócrates tenha sido chamado para interrogatório? Será desproporcionada a sua detenção na manga, à saída do avião? E excessiva a detenção por três dias, acompanhada da medida mais dura de coação? Não sei, e porventura até quem dirige a investigação, teve de decidir sobre isto e muito mais com base em elementos contraditórios, e visitado várias vezes pela dúvida.
  6. O que seguramente não parece razoável é a excessiva dramatização que se tem feito em redor daquilo que está a ocorrer. O caso é grave, sensível, e sujeito às imperfeições humanas. Mas não compreendo que se faça de um simples caso, por mais importante que seja para o próprio e para muitos, o barómetro decisivo da saúde do Regime, numa lógica binária, de “tudo-ou-nada”.
  7. Mais. Sejamos claros: José Sócrates há mais de três anos que é um simples cidadão, não exercendo quaisquer funções de soberania. A sua detenção não perturba objectivamente o normal funcionamento das nossas instituições. Há um lado simbólico, para lá do Homem, neste processo? É motivo de descrédito termos um antigo primeiro-ministro sob tão graves suspeitas? Sim, mas nada, que não interesses particulares, convida a precipitações, pressas fáceis, ou tiradas mediáticas implacáveis, numa fase tão inicial de uma caminhada que pode até vir a ser tortuosa e demorada.
  8. A prisão de Sócrates coloca constrangimentos ao Partido Socialista? Sim, mas cabe a António Costa saber libertar-se de uma herança política – o socratismo – que até lhe fazia sombra, fazendo da dificuldade uma oportunidade para criar um espaço político-partidário verdadeiramente seu.
  9. Há uma longa agonia que podemos evitar se soubermos ter a serenidade de darmos a importância às coisas que elas nos merecem, e claramente ninguém morre se José Sócrates for condenado, ou ilibado das suspeitas que sobre ele recaem – isto, obviamente, sem prejuízo dos direitos que o próprio tem como cidadão, e que os deve legitimamente exercer.
  10. Tudo o resto a que temos assistido não são mais do que pânicos e sentimentos apocalípticos de fiéis seguidores que olhavam para Sócrates religiosamente, como se de um líder de uma seita protestante se tratasse, querendo fazer das suas dores as dores do País e dos portugueses. Também não me agrada o clima de “circo romano” que muitos montaram, exigindo a cabeça imediata de alguém que, sejamos rigorosos, está longe de estar condenado. Sinceramente, acho que a excitação vai passar rápido. O Regime está em crise, por causa do endividamento, das dificuldades diárias que os portugueses enfrentam, por causa do excessivo peso do Estado traduzido em impostos, pela incerteza quanto ao futuro que tantos hoje sentem, pelo desalento e falta de oportunidades, pela falta de qualidade e de respostas do sistema político. A prisão de Sócrates não vai causar tumultos nas ruas, nem invasões ao Parlamento. Nem, em sentido inverso, regenerar a Nação.
  11. A dramatização em nada favorece, aliás, José Sócrates. Havendo suspeitas, elas têm de ser clarificadas. Da sua clarificação poderá resultar até um arquivamento, ou uma absolvição em Julgamento, e não necessariamente uma condenação. Todos aqueles que hoje defendem que se não houver uma condenação a Justiça falhou, estão a colocar uma pressão prejudicial em instituições que têm de ser imparciais, na procura da Verdade, e não de condenações. O que é relevante nesta fase não é se no futuro José Sócrates vai ser ou não condenado, mas se os indícios recolhidos, na presente data, são suficientemente fortes para gerar uma suspeita susceptível de dar corpo a uma investigação. E daquilo que nos tem sido dado a conhecer, o que seria grave é que, perante os factos alegados, a Justiça não procedesse a uma investigação e aclaração.
  12. Há coisas que no nosso sistema penal não me agradam. Preferia viver num país onde fosse absolutamente proibida a divulgação de imagens à porta de tribunais, ou de diligências judiciais diversas, como as que assistimos aquando da sua detenção, buscas domiciliárias, ou visitas na cadeia. Gostava que o Ministério Público atuasse num ambiente onde não sentisse ser necessário legitimar a sua ação junto do público fornecendo elementos à comunicação social, como forma de poder prosseguir eficazmente a sua missão. E se estes aspectos – que não são tão secundários como muitos nos querem fazer crer – merecem a nossa atenção, não são eles que estão verdadeiramente em causa na investigação. Não me agrada o espetáculo, mas tão pouco vi nada de tão grave que justifique a imolação pública do Regime, à conta de uma detenção.
  13. Da minha parte, espero serenamente pelas incidências e clarificações, no devido tempo – o da Justiça – necessariamente mais lento do que a avidez das massas e a histeria coletiva que tantas vezes nos visita nos momentos polémicos e sensíveis. Para o bem e para o mal, somos latinos. E isso nunca ninguém vai domar.
         Rodrigo Adão da Fonseca

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