terça-feira, 17 de julho de 2012

Cangalheiro-Mor (final) os olhos impuros


Deixei crescer a barba durante dois dias, pus uma "tee shirt" côr de rato, indiferente ( fiz a minha tropa já depois do 25 de Abril e entre outras missões, fui Chefe de Brigada da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, a polícia política do anterior regime. Fui o instrutor dos principais processos, mas tudo isto vem a propósito de ler nos Autos que os membros do Partido Comunista na clandestinidade, para não se fazerem notados e presos, usavam fatos de côr de rato) e uns jeans coçados e velhos e uns ténis meios rasgados do uso.

Avancei pelo bairro de Chelas a dentro e ia perguntando a “mitras” se sabiam de um assalto que tinha havido a uns “gringos” e que tinha uma quantia elevada para dar a quem me devolvesse o disco duro de um computador roubado. Visitei ruas esconsas, tascas com drogados a sair da ressaca e a beberem, e já desanimado preparava-me para voltar de mãos a abanar, quando topo com um rapaz novo, bem parecido, mas andrajoso e sujo, que me disse que sabia quem tinha sido.

Tive um sobressalto e desvendei-lhe que tinha um prémio de USD 2,500 para dar e expliquei-lhe o que pretendia.

Respondeu-me várias coisas:

- que os USD 2,500 não lhe interessavam pois essa quantia gastava ele por semana em “pó”;

- que era do Norte, primo de um conhecido empresário muito rico, casado e tinha uma filha muito pequena, mas que não conseguia sair daquela vida e dormia na rua, numa porta de uma loja;

- que o ladrão tinha estado na véspera a drogar-se ao lado dele e falou. Estava a contar o roubo em voz alta, mas o meu interlocutor estava a sair da ressaca e teve que voltar a drogar-se para ouvir a história do companheiro.

- que o larápio todas as vezes que fazia um golpe grande, escondia o produto do roubo e partia para Guimarães para a REMAR, para fazer uma desintoxicação.

- que ele estava disposto a ajudar-me, sem mais, a ir a Guimarães e partir no comboio da noite para ir ter com o outro. Explicou-me que nos primeiros dias de tratamento há uma sessões conjuntas de terapia em que cada um conta as suas últimas proezas.

- ele propunha-se ouvir, saber aonde era o esconderijo, voltar de imediato a Lisboa e ir roubar o outro!

Pensei na frase “ ladrão que rouba a ladrão, tem cem anos de perdão” mas fiquei bastante perturbado pois tudo aquilo era novo para mim. Tinha-me dado cita, num canto escuro de um jardim ao pé do bairro de Chelas e eu não estava tranquilo, com medo de um assalto.

Enchi-me de coragem, pensei no meu futuro emprego e disse que sim, que concordava com tudo o que ele dissera, e que queria saber os próximos passos.

Levei-o a um Albergue Nocturno, na Rua das Poiais de S. Bento, aonde ele tomou banho, fez a barba e pôs roupa limpa que lhe deram.

Propus-lhe irmos a uma pastelaria para ele comer o que quisesse e fui-lhe dizendo que se ele trouxesse de volta o dito disco rígido do computador, para além do prémio, dava-lhe a minha palavra de honra que faria tudo para que a minha futura empresa o tirasse daquela vida e voltasse para casa.

Olhou-me durante algum tempo nos olhos, em silêncio, e eu acreditei que ele ia cumprir o prometido. Era um olhar longo, misto de agradecimento, de tristeza, de vislumbre, talvez, de uma nova vida.

Quis partir de imediato e eu propus dar-lhe dinheiro para o comboio do Foguete para Guimarães. Perguntei quanto seria e ele disse-me que seriam uns Euros 2,000…Ia caindo de rabo e retorqui-lhe que nem que fosse de TGV lhe custaria esse dinheiro.

Explicou-me que tinha que passar pelo Casal Ventoso a buscar pó, senão não conseguia levar esta tarefa a bom termo! Contrafeito, dei-lhe o dinheiro e o meu número de telemóvel, dizendo-lhe só que me chamava Manuel!

Desapareceu e nunca mais disse nada até hoje!

Fiquei tão triste (tudo se resolveu e fui Presidente durante 4 anos magníficos, com experiências bem interessantes, mas que ficarão para outra ocasião) pela fragilidade da natureza humana!

Aqueles olhos, pareceram-me límpidos e se calhar eram, mas a força da droga foi mais forte!

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