quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Gosto sempre de voltar a esta história, interessante para quem não conhece.

Gosto sempre de voltar a esta história, interessante para quem não conhece. Em 2011, com 87 anos, morreu Danielle, a viúva de François Mitterand. Era uma mulher invulgar. Em 96, no enterro do marido, esteve lado a lado com Anne Pingeot, amante do Presidente - passe a expressão - e abraçou publicamente Mazarine Pingeot, filha secreta dessa ligação, que conheceu nesse dia. Foi duramente criticada pelo comportamento indigno de uma primeira-dama e, como resposta, endereçou uma carta ao povo francês que, por si só, vale uma biblioteca. E que lembra, também, que a classe não é exactamente um par de sapatos italianos. Só encontrei tradução em português do Brasil:

“Antes de mais nada, devo deixar claro que não é um pedido de desculpas. Muito menos um enunciado de justificativas vãs, comum aos covardes ou àqueles que vivem preocupados em excesso com a opinião dos outros. Aos 71 anos, vivendo a hora do balanço de uma existência que é um sulco bem traçado e profundo, já não mais preciso, e nem devo, correr atrás de possíveis enganos. Vivo o momento em que as sombras já esclarecem e que as ausências são lindas expressões de perenidade e criação. Sombras e ausências podem ser tudo, ao passo que luzes e presenças confundem os mais precipitados, os mais jovens.

Vivi com François 51 anos; estive com ele em muito desse tempo e me coloquei sempre. Há mulheres que não se colocam, embora estejam; que não se situam, embora componham o cenário da situação presumível. Uma vida de altos e baixos. Quando se vive assim em comum, cria-se uma solda e a consciência de que é preciso viver depressa. Concentrar talvez seja a palavra. Por isso tentei entendê-lo, relacionar-me com sua complexidade, com as variações de sua pessoa e não do seu caráter... Quem entende ou, pelo menos luta para compreender as variações do outro, o ama realmente. E nunca poderá dizer que foi enganada ou que jamais enganou. Não nos enganamos, nos confundimos quando nos perdemos da identidade vital do parceiro, familiar ou irmão. Ou jamais os conhecemos. Quem não conhece, não tem enganos. Nas variações do outro, não cabe o apaziguador que destrói tudo antes do tempo em forma de tranquilidade.

Uma relação a dois não deve ser apaziguada, mas vibrante, apaixonada, e não enfastiada. Nessa complexidade vi que meu marido era tão meu amante quanto da política. Vi, também, que como um homem sensível poderia se enamorar, se encantar com outras pessoas, sem deixar de me amar. Achar que somos feitos para um único e fiel amor é hipocrisia, conformismo. É preciso admitir docemente que um ser humano é capaz de amar apaixonadamente alguém e depois, com o passar dos anos, amar de forma diferente. Não somos o centro amorável do mundo do outro.

É preciso aceitar, também, outros amores que passam a fazer parte desse amor como mais uma gota d´água que se incorpora ao nosso lado. Aceitei a filha de meu marido e hoje recebo mensagens do mundo inteiro de filhos angustiados que me dizem “Obrigado por ter aberto um caminho. Meu pai vai morrer, mas eu não poderia ir ao enterro porque a mulher dele não aceitava”. É preciso viver sem mesquinhez, sem um sentido pequeno, lamacento, comum aos moralistas, aos caluniadores e aos paranóicos azedos que teimam em sujar tudo. Espero que as pessoas sejam generosas e amplas para compreender e amar seus parceiros em suas dúvidas, fragilidades, divisões e pequenas paixões. Isso é amar por inteiro e ter confiança em si mesmo.”

(Na foto, da esquerda para a direita: Danielle, de cachecol branco, e o filho, Jean-Christophe, Mazarinne e Anne, esta última de chapéu, um pouco atrás)

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