domingo, 11 de janeiro de 2015

A minha velha por António Lobo Antunes


A minha velha tinha sido bailarina de segunda fila, em nova, num teatro de variedades, e as plumas que ela usava na cabeça ainda estão lá em casa numa jarra, um bocado enegrecidas pelo tempo, já não cor de rosa, cinzentas a atirar para o escuro, depenadas, a cheirarem a mofo, testemunhando
- O sucesso que eu tinha
uma glória artística não especialmente brilhante mas digna
(mesmo a segunda fila não é para todos)
e uma genuína vocação para a dança de que ainda hoje me orgulho. Nunca casou por, na sua opinião e na opinião das pessoas mais informadas, a dança não ser compatível com o matrimónio. Em todo o caso teve-me, de um senhor que não conheci, um admirador com dinheiro, mais idoso que o pai dela, que lhe comprou este apartamentozito e o mobilou com gosto, espelho de moldura de talha, cadeiras prateadas, uma imagem de São Sebastião à cabeceira, cheio de setas de lata pelo corpo todo e um pano a tapar as vergonhas, destinado a lembrar à minha mãe o respeito pela santidade e, implicitamente, o que lhe poderia acontecer no caso do seu comportamento se desviar um milímetro dos estreitos limites da virtude. Aliás havia uma outra seta de pau, encostada ao cortinado, que o senhor devia utilizar
(a minha mãe para mim
- Como dizia o teu pai é preciso pôr ordem nesta desordem)
a fim de corrigir atitudes menos consentâneas
(a minha mãe muito gostava ele da palavra consentânea)
da parte da artista, tais como encontrar um electricista do teatro a fazer-lhe companhia quando ele chegava sem aviso. O senhor com dinheiro faleceu aqui em casa, parece que com mais de oitenta anos, na sequência da frase
E se a gente repetisse só mais uma vez
que a minha mãe sempre me aconselhou a não pronunciar a partir dos setenta e sete. Oxalá me lembre disso quando chegar esse número. Pouco depois da sua morte a minha mãe largou o bailado, segundo ela porque queria sossego, segundo o dono do teatro porque já mal erguia o tornozelo
( Precisas de umas muletas, tu)
e instalou-se definitivamente no sofá da sala, a fumar por uma boquilha interminável e a receber a visita das antigas colegas que a acompanhavam num chazinho, a conversarem de mestres de obras defuntos e outros beneméritos, de mistura com aprendizes de electricista adolescentes que lhes exigiam dinheiro em troca de favores misteriosos resumidos na frase
- Nem descansava, aquele
acerca de cujo significado não me atrevo a exprimir-me por respeito filial, além de uma possibilidade de engano da minha parte, remota, é certo, remotíssima, pronto, mas quem pode afirmar seja o que for com absoluta certeza apesar da minha velha me piscar um olho subitamente jovem, no qual cintilavam alegrias remotas.
Normalmente visitava-a aos domingos, ao fim da tarde, depois da sua sesta, quando ela já na poltrona, com o gato ao colo, enfiada num roupão cheio de transparências e rosas de tule, a fumar a boquilha interminável
- Beija-me ao de leve por causa da maquilhagem
normalmente à espera de um amigo. Tinha-os de duas espécies: cavalheiros trémulos, que se deslocavam como os andores das procissões, todos delicadezas e prendas, para além de um envelope deixado por acaso na mesa da entrada, e sujeitos de tatuagem no braço, que trabalhavam de estivadores, e à saída emagreciam o envelope
- Dás licença não dás?
sem me ligarem peva ou deixando cair
- Esse caramelo é o teu filho?
no profundo desprezo que aqueles que pesam noventa quilos dedicam aos magrizelas de sessenta. Só com nós dois em casa a minha velha ordenava
- Senta-te aqui ao pé de mim
e, vista de perto, notava-lhe as rugas sob a pintura, as perninhas magras, a memória que ia faltando, o cabecear de sono do qual despertava de repente
- Não penses que adormeci
num bocejo a que faltavam dentes e sobrava cuspo nos ângulos da boca.
Nessas alturas apetecia-me pegar-lhe na garrazita de pássaro da mão, chamar-lhe
- Mãe
abraçá-la, mas permanecia quieto antes que um
- Deixa-te de mariquices
me pregasse ao tamborete onde me sentava. Era então que as suas feições começavam a alterar-se pouco a pouco, tirava um lenço da manga para secar o nariz esclarecendo
- Não são lágrimas isto
às vezes beliscava-me o queixo e, uma ocasião ou duas, chegou a tratar-me por
- Filho
num murmúrio inseguro que corrigia de imediato
- Às vezes fico parva, não ligues
sem me perguntar fosse o que fosse, sem conversar comigo, desatenta de mim e, no entanto, numa espécie de sobressalto se por acaso eu me movia
- Não te vais embora já, pois não?
perdida numa espécie de angústia que o lenço da manga não conseguia apagar. Proibia-me de acender as luzes que dão sempre uma imagem horrível de nós, cavando-nos o rosto, murmurava baixinho
- Pensando melhor segura-me na mão
e ficávamos assim , a minha velha e eu, a olharmos, pela janela, as árvores escuras da rua e as primeiras lâmpadas dos prédios, onde os vizinhos começavam a jantar. Pedia então
(pedir, sim)
- Segura-me com muita força
e às vezes, palavra, encostava a cabeça
- Quero lá saber do penteado
ao meu ombro, até se afastar, de súbito, num movimento de orgulho de bailarina de segunda fila, de meias remendadas que não se viam bem e plumas decrépitas na cabeça. Ordenava-me então
- Vai-te embora
num gesto de princesa, sem olhar para mim à medida que me afastava. Já com a mão na maçaneta escutava-a gritar
- Rapaz
e, quando eu no limiar da sala, perguntava, numa voz de menina onde vibravam desgostos e medos
- Fui uma grande artista, sabias?

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