quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A recuperação da culpa


A Cultura Europeia encontra-se, há pelo menos seis décadas, numa situação embaraçosa. Ao serem solucionados problemas da saúde e do trabalho; ao crescerem as hipóteses e as profecias do bem-estar, o espírito criador foi sofrendo na sua raiz uma lesão profunda. A solidão, tão cara ao homem de pensamento e necessária à sua originalidade, foi sendo condenada pelo apelo à aldeia global. As fronteiras, ao caírem, produziram um fenómeno de desorientação; os mass-media, ao servirem os grandes espaços geofísicos, contribuíram para uma desmobilização do génio.

Não é de estranhar que a Cultura se tornasse uma espécie de cruzada, sem objetivos exceto os de menos alcance e que competem aos programas locais, de divulgação mais excitante. Mas o pensamento ficou bloqueado, o cérebro humano não responde aos estímulos da paixão criadora. Os modelos heroicos foram surpreendidos por uma concorrência de robots, que desiludem os homens e deixam as sociedades perturbadas quanto aos seus direitos à imaginação própria. No entanto, é preciso enfrentar as condições oferecidas por uma nova era que se quer propensa à esperança genuína dos povos. Uma era de Cultura.

A Cultura é, em princípio, um sentimento de afeto pelo mundo que nos rodeia. Se o afeto das situações não for contemplado, a Cultura não passa do âmbito das instituições que a nomeiam e tentam proteger. Ao ampliar os seus horizontes físicos, o homem sente-se tentado a julgar-se preparado para o acontecimento da Cultura. Porém, conhecer mais nomes célebres e lugares estranhos não desperta o caráter primordial duma cultura, que é o ser livre de orgulho e dispensado da inteligência de grupo. Toda a diferenciação cria qualquer forma de fanatismo. A Cultura instalou-se sempre partindo duma diferenciação. É um direito, sem dúvida, mas em que medida um direito não é também uma culpa?

Para vivermos plenamente um direito, temos de nos mover dentro do afeto desse direito. Não na autoridade ou no espírito da lei que lhe assiste, mas no afeto do direito. E o afeto da culpa? Quando ele nos é negado, morremos no corpo e no espírito.

A um auditório de mulheres de cultura, faria sentido eu dirigir a seguinte pergunta: porque é que a culpa foi, através dos tempos, atribuída às mulheres? Ao atribuir-se à mulher um estado de culpa, não se estará a dignificar a culpa como motivadora duma civilização? É possível. Nesse caso, a mulher, como portadora duma culpa, é sempre iniciadora duma cultura. A culpa, nesse caso e aqui, não é um opróbrio, mas uma consequência da própria infalibilidade. Só da culpa a pessoa pode elevar-se. A cultura parte do pressuposto duma culpa. Só ela se interroga. Só ela desencadeia o conflito.

S. Boaventura, porque observa a ordem da justiça com particular atenção, considera o pecado original não só imputável à mulher, mas também ao varão por não a ter contido e reprimido. O homem teme, ao mover a mulher a seguir a razão, perder a sua parte de deleite sensual de que a sociedade fez um bem útil. É de prever que novas capacidades intelectuais e morais estejam em evolução no homem do futuro. A sua sensibilidade ganhará forma no sentido de o aproximar de uma linguagem mais universal do que tribal. A literatura e as artes serão cultivadas como uma religião de ascetas, provavelmente. A ascese é a escolha duma inovação. É uma prova da inovação.

Entretanto, um dos grandes impasses da Cultura reside nos conflitos entre o prazer que a sociedade adapta ao seu sistema, e a vinculação ao desprazer, ou seja, ao trabalho e a todas as propostas difíceis.

O mundo está constituído por etnias cujas contradições não são absorvidas tão rapidamente como se movem e se reproduzem. A Cultura, fenómeno de sedimentação de experiências, tornou-se num expediente, numa tática e num consentimento sem obra.

Todas as pessoas possuem um dom que protege há milhões de anos a sua vida na terra. É uma espécie de infalibilidade que previne o instinto de morte de se desenvolver e nos destruir. Não tem a ver com a opção, mas com um acordo comum entre todas as espécies. A vontade do homem apoia assim o interesse dos políticos que, como Ciro, fazem de cada lar um bordel, para deste modo governarem as metrópoles com menos despesa de guarnições.

A Europa enfrenta-se com o seu dom de infalibilidade. Decisão, partilha, amor e cultura têm de ser conduzidos pela mão da infalibilidade. Senão, tudo não passará de muito barulho para nada.

O afeto da cultura, mais do que o planeamento da Cultura, a infalibilidade, mais do que a certeza, serão auxiliares para nos podermos conhecer e libertar.

São estas as ideias para uma renovação da Cultura. São ideias que marcam o entendimento do tempo comum europeu, tanto atlântico como mediterrânico.

O tempo europeu, subsidiário da cultura helénica e romana, encontra hoje o vazio do pensamento que a serviu. As dicotomias bem e mal, justo e injusto, puro e impuro, sofrem grandes provações. A tendência é para recuperar do passado velhas fórmulas cuja sabedoria está confundida com preconceitos mutáveis.

Que nome daremos à atualidade da culpa, única forma de instaurar uma cultura? É com certeza nome de mulher. O nome do eterno feminino que o Dr. Fausto reconheceu não sem admiração. «A tua incerteza mata-me» - diz Fausto a Margarida. E ela está completamente nas últimas palavras que profere: «Causas-me horror!»

Freud deu o último abanão ao sentimento burguês de culpa. Depois disso a sociedade não parou de conferir ao prazer uma inteligência como forma de reprimir os ideais, mais perigosos do que o instinto do prazer.

É certo que a culpa pode submeter os homens a um simples treino da infelicidade. Hoje, o homem está capacitado de ser infeliz, apesar de as condições de vida serem melhores. Os seus padecimentos são demonstrados, são, por assim dizer, consumidos. Mas não correspondem a qualquer glória integrada no mistério humano.

Conheci uma mulher pobre e, além disso, atrasada mental. Ela passava os dias prestando serviços gratuitos numa pequena loja onde eu ia fazer as minhas compras do dia: o pão, o leite, a fruta. Ela vigiava-me para que eu não escolhesse a fruta e repreendia-me se eu o fazia. Até que, um dia, a dona da loja lhe fez ver que eu era uma pessoa importante e que não podia tratar-me dessa maneira. No fundo, eu achei que aquela mulher era idiota e que alguém devia pô-la na ordem.

Só que, alguns dias depois, a mulher apareceu morta em casa. Embora todos comentassem aquilo sem qualquer emoção duradoura, eu pensei que alguma coisa teria acontecido que lhe tivesse provocado a morte. Ela tinha sido atingida na sua infalibilidade. Há um ponto na razão que comandou a infalibilidade, o direito de julgar e de agir conforme o afeto da justiça. Eu tinha ferido de morte a infalibilidade dessa mulher. Ela viu-se como todos a viam: pobre e inútil, sobretudo, fora da inteligência da culpa. Eu e os outros não a culpávamos. Mas também não a amávamos.

A mulher-objeto, a mulher-demónio, não são senão interpretações da culpa. A mulher não representa maior perigosidade do que o homem, e isso tenta-se demonstrar ao situá-la numa escala inferior, ou numa situação submissa. Mas o que muito se demonstra sofre de falta de convicção.

A mulher conhece-se a si mesma; o homem não. Não é por acaso que o oráculo de Delfos, uma mulher, aconselhe o homem a conhecer-se a si mesmo, o que produziria o estado de culpa. A culpa que não se descreve por meio de qualquer linguagem, é unicamente uma via onde se cruzam a vida e a morte.



Texto inédito escrito entre 1990 e 1993, publicado no jornal “Público” a 15 de outubro de 2011, dia em que Agustina Bessa-Luís completou 89 anos.

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