segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A linguagem



Gostava de começar por apresentar duas conhecidas e controversas perspectivas sobre a linguagem, mas nada contraditórias na minha opinião.

A primeira é uma queixa tantas vezes ouvida de que a linguagem é de alguma maneira inadequada para captar, ou reconhecer, a nossa vida interior, as nossas experiências privadas.

Como podemos percepcionar em palavras os nossos sentimentos? As descrições parecem tão inexpressivas, tão longínquas, tão frias em relação à vivacidade de uma sensação ou emoção.

Os seres humanos, porém, precisam da linguagem, apesar de estarem reféns dela.

Para descrever o que se avista de uma janela, ou mesmo uma flor num vaso pousado numa mesa (escura no centro, com as folhas murchas nas pontas, iluminada pelo sol da manhã, reflectida num espelho) podem-se enumerar mil situações e mesmo assim falhar…em conseguir pôr em linguagem tão completa quanto possível tudo quanto a flor possui nas suas propriedades.

E se a especificidade, “coisificação” daquilo a que chamamos “ objectos concretos” é tão inacessível á linguagem corrente, quanto mais inacessível não será a de transmitir a sensação de um momento no nosso pensamento, ou o humor, uma visão ou uma atitude.

A segunda perspectiva, também conhecida, é a de que só podemos compreender completamente as descrições da vida privada de terceiros, os seus sentimentos e experiências, se tivermos experimentado as mesmas sensações.

Isto leva-nos até à afirmação tantas vezes ouvida de que “ não podes compreender totalmente o que estou a tentar dizer-te, porque nunca o sentiste como eu”!

Determinadas descrições de certas espécies de experiências podem unicamente ser entendidas por uma pessoa que as tenha tido de uma forma semelhante.

O problema é o de que o âmago da verdade sai distorcido se associado muito de perto a uma determinada concepção do seu significado.

John Locke dá-nos uma perfeita definição ao dizer que as palavras, no seu sentido mais simples e primário, significam nada mais do que as ideias do pensamento de quem as usou. As palavras, segundo ele, são a exteriorização de ideias nas mentes das pessoas.

Por outro lado, não se pode compreender o significado da palavra “ vermelho” excepto se tivermos visto coisas encarnadas. De nada serve aprender línguas, ou consultar dicionários. Por isso também se pode aceitar que o sentido das palavras é precisamente o objecto que cada qual utiliza quando observa coisas encarnadas.

Que conclusões podemos tirar?

A poesia é a única que fala a linguagem das palavras.

A palavra, para além de ser a matéria-prima da criação da poesia, é o instrumento utilizado pelo poeta para expressar os seus estados de alma, extravasando, dessa forma, os seus mais íntimos sentimentos.

Assim sendo, o peso e o valor da palavra dependem, e muito, do modo como esta é articulada e, principalmente, dos acréscimos de significado que o poeta lhe dá.

Na poesia, a linguagem não é apenas um sistema orgânico do qual lançamos mão para nos expressarmos e comunicarmos com as outras pessoas. Nela, a linguagem apresenta-se como um "ser vivo" e, como tal, possui vida, personalidade e determinadas “nuances” que a tornam única quando comparada com as demais formas de manifestações linguísticas.

Na minha opinião a linguagem possui três funções fundamentais no esquema da comunicação: a representação, a expressão e o apelo.

A palavra, assim, transforma-se num instrumento utilizado pelo poeta para retratar a sua visão de e sobre o mundo; é o código por ele utilizado para traduzir os seus sentimentos e desnudar as suas emoções. Possui vida, é nervosa, auto-suficiente e criadora de outras palavras que, por sua vez, possuem um novo significado. No poema, a palavra é que faz nascer o "espaço."


Som da Linguagem

Por vezes reaprendo
o som inesquecível da linguagem

Há muito desligadas
formam frases instáveis as palavras

Aos excessos do céu cede o silêncio e
as constelações caem vitimadas
pelo eco da fala

Gastão Cruz, in "Campânula"

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