quinta-feira, 9 de junho de 2011

Memórias do cárcere (7) o chefe do gang


Mal nos abriram as portas das celas, avança para mim sorridente um homem dos seus 54 anos, que me estende a mão e se apresenta:

- Bom dia, sou o Ratinho.

- Eu sou o Ron – disse-lhe retribuindo o gesto.

Gostei da cara dele logo ali. Parecia um “gentleman dos bandidos”, bem entendido. Por alguma razão estaria lá!

- Vê-se que não és da chunga, o que vai sendo raro nesta prisão. Já me dirás o que fizeste, mas tenho urgência em falar contigo, primeiro porque és meu vizinho de cela e poderemos comunicar facilmente e depois porque tive uma baixa no meu grupo – acrescentou o Ratinho, cofiando uma barba surpreendentemente bem aparada e limpa.

Fomos tomar o pequeno-almoço à cantina e sentámo-nos numa mesa mais afastada dos outros reclusos. Vi uma data de olhos observarem-nos à nossa passagem, e percebi que o meu companheiro deveria, pelo menos, ser conhecido, senão respeitado. Já com o David, passei despercebido, o que viria a constatar mais tarde, ser uma grande vantagem.

- Sou o chefe de um gang aqui dentro. No meu grupo tenho condenados por crimes de todo o tipo, mas não aceito gajos da ralé, ou seja, têm que ser inteligentes e fiéis. Pagam com a morte os deslizes que cometerem e normalmente isso acontece mais com os ignorantes e os estúpidos. Tu tens cara de educado e esperto – comentou o Ratinho com uma voz decidida e sem pudor, como se estivesse a falar de tremoços!

- Sim, tenho um curso superior e tenho ética no que faço – disse-lhe sem hesitação.

- Precisas de um padrinho que te proteja e por outro lado terás que fazer algumas tarefas que eu te ordene e que sejam necessárias ao gang. Estás disposto a aceitar estas regras? – perguntou o meu vizinho de cela.

- Preciso primeiro de saber quais são as regras, quem és tu e quem são os outros membros do grupo e o que fizeram para aqui estarem, o tipo de actividades que me serão exigidas cumprir…e o que mais me ocorrer. Dá-me uns dias…aqui não há pressa! – acrescentei sem temor.

- Muito bem, tens até Sábado de manhã para te decidires. Depois de nos verem juntos serás abordado por outros gangs. Se quiseres, logo pela tardinha conversamos de novo no pátio e já te poderei responder a todas as tuas dúvidas e perguntas – e o Ratinho levantou-se e foi-se deixando-me sozinho.

De facto, David aproximou-se e sentou-se ao pé de mim.

- O Ratinho é um dos mais poderosos chefes dos gangs. Estás cheio de sorte em ele te ter contactado. Eu se fosse a ti aproveitava e aceitava o convite que ele seguramente te fez para ser teu padrinho. Ele tem lá fora uma bem sucedida rede de roubos de carros de topo de gama e mesmo estando aqui detido, ganha muito dinheiro. Compra os guardas e tem tudo o que quer – e David olhava para mim com algum respeito ao me dizer isto, creio que, por me ter visto com o meu futuro chefe!

- Posso ser-te muito útil se me quiseres aproveitar. Sou um bufo e sirvo aqui dentro vários gangs ao mesmo tempo, por isso sei sempre o que se passa em todo o lado. Só te exijo que me vás informando do que sabes e que de vez em quando me pagues o que eu te pedir. Será sempre proporcional aos serviços que te prestar. Verás que não te arrependerás – e com esta tirada se foi.

No pátio fui-me aproximando de um grupo de mais jovens que jogavam basquetebol á volta de um poste com uma rede e pus-me a olhá-los, mas no fundo fiquei apreensivo com tudo o que ouvira. Abria-se um novo mundo a que nunca estivera habituado no mundo lá fora.

Tinha que pensar muito seriamente os riscos que corria, mas não me ocorria nenhuma alternativa caso recusasse. De nervos, começaram a tremer-me as pernas e o corpo inteiro e fui escorregando até ao chão e desatei num pranto, soluçando alto.

Olharam vagamente para mim e ignoraram-me mas não conseguia controlar o meu mal-estar e aflição.

Senti um afago no ombro e alguém a pegar-me na mão fazendo festas suaves. De repente revi-me em África, em Lourenço Marques, à saída da minha escola no fim do dia, quando depois de uma luta sem tréguas com uns mais fortes que me maltrataram à séria, Manuel Candeeiro de Deus me apareceu a consolar e a levar-me de volta a casa.

- Vem, vamos para dentro. Acontece a todos nos primeiros tempos, não temas, verás que passa – e ajudando-me a levantar, abraçou-me e amparou-me até ao corredor da minha cela.

- Chamo-me José Maria, mas sou conhecido por Zeca.

(continua)

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