segunda-feira, 6 de junho de 2011

Memórias do cárcere (3) a causa


Demos um beijo longo, mas formal.

Depois, ela despediu-se de mim, sorrindo e piscando o olho, o que me pareceu falso.

No princípio, eu adorava quando ela sorria e piscava o olho ao mesmo tempo, mas agora até isso me irritava.

Observei-a a atravessar a Av.da República e pedi a todos os santos para que um carro desrespeitasse o sinal e a atropelasse.

Quando estivesse a agonizar no asfalto, ensanguentada, eu pegar-lhe-ia ao colo, olharia nos seus olhos e dir-lhe-ia que fora a mulher da minha vida, e ela faria um último sorriso, e piscaria o olho, e diria que me amava.

Emocionado eu deixaria escorrer uma lágrima, uma só, que cairia sobre a sua cara e deslizaria até à nuca, e ficaria ali por uns instantes, quase a tocar no chão, quase a cair, como que um símbolo da sua vida a esvair-se, e quando a gota caísse, daria um último suspiro, bem forte, e engasgar-se-ia com o próprio sangue, contorcer-se-ia com as suas costelas partidas, soltaria um gemido de quem sabe que está a morrer, e morreria !

Uma morte poética, nos braços do marido que a amava, no meio da Av. da República, engarrafando o trânsito, com uma multidão a assistir, e talvez até a notícia fosse publicada no jornal do dia seguinte : seria uma morte bonita, e eu choraria durante dias e noites em claro a lembrar-me do nosso amor sem limites, e a minha cara incharia de tanto choro, de tanta tristeza, de tanto desgosto.

Espalharia por todo o lado que a minha vida não fazia mais sentido, que era melhor que Deus me tivesse levado !

Volveriam muitos dias até eu voltar ao trabalho, vários meses para correr de novo junto ao rio Tejo, e outros tantos para beber uns copos com os meus amigos e até a olhar para outra mulher, bonita, elegante, inteligente, que sorriria e piscaria o olho ao mesmo tempo !

Eu desejá-la-ia, seduzi-la-ia, amá-la-ia e poderia acontecer que pudesse até ser correspondido, e finalmente sentiria de novo o que por tantos anos me fora negado.

Mas, infelizmente, nenhum carro desrespeitou o sinal.

(continua)

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