quinta-feira, 16 de junho de 2011

Memórias do cárcere (11) o paraíso escondido do meu preceptor africano


Toda a costa do Niassa é preciosamente recortada em baías de grande beleza.

O Niassa é a zona dos grandes isolamentos e das grandes solidões, das grandes distâncias e dos grandes horizontes. Nenhuma outra paisagem nos dá, tão profundamente, a ideia da extensão e profundidade africanas — e em nenhuma outra também a África se mostra mais próxima da África do período lendário, que fez do grande Continente o mais bárbaro armazém de mistérios mundiais.

Aproximamo-nos da aldeia de Manuel Candeeiro de Deus, sede do gentio de Macuana, que, de alguma forma deu o nome às gentes que, em maior número, povoam esta face litoral: os macuas.

Mantêm-se as características solenes da paisagem e as várias faces das gentes macuas. Cajueiros, mangueiras em flor e embondeiros, abundam entre as espécies arbóreas. Os indígenas festejam a passagem do autocarro — eles alegres e vivos, rindo por todos os dentes, elas quase tímidas, muitas com as máscaras (de beleza).

Depois, a estrada, ora sobe a pequenas colinas onde o arvoredo se pega, ora desce a baixos enlameados onde o mar, sorrateiramente, se infiltra. Sucedem-se os pântanos e grandes calas vazias e salgadas. As queimadas passaram mas enegrecem mais o ambiente, tendo expulsado o verde da paisagem.

E por fim surge uma grande, imponente, baía, que vamos bordejando e nos faz esquecer as fealdades da terra.

Tudo nesta serra recatada e perdida em lonjuras do Niassa se junta para a tornar encantadora: o isolamento, a deliciosa movimentação do seu relevo, os seus silêncios profundos, uma espécie de virgindade selvagem, difícil, ainda quase inacessível — e, ao mesmo tempo, as suas paisagens frescas, os seus recantos de paraíso.

A subida é naturalmente difícil. Nada se construiu ou preparou para a facilitar. Há passagens em que temos de nos servir dos quatro membros, como os bichos. Mas todos os esforços e fadigas são constantemente suavizados pelo encanto do cenário — os vales atulhados de folhas e sombras, janelas entre ramos sobre horizontes azuis, fios de água cantando no silêncio, solenidade de penumbras, visões graciosas de antílopes, etc.

O calor é intenso, mesmo sob as ramadas que encobrem o sol por completo — mas a frescura das cores e das penumbras entra pelos olhos e suaviza os ardores da fornalha.

Chegamos ao pico às quatro horas da tarde. Marchávamos desde as seis da manhã — isto é, trepávamos, gatinhávamos.

E lá no alto — que maravilha... e que desolação!

Que maravilha a dos horizontes!

Tem-se a impressão de que se vê dali uma parte do planeta como se veria do espaço celeste, a milhares de metros da Terra. Uma grande, infinita, planície que se nos afigura lisa como uma bandeja. E, nessa bandeja os montes dispostos e situados como coisas estranhas, móveis, apenas arrumadas para se deslocarem para outros lugares.

Não há entre eles vales, nem ondas de terreno. Estão ali, puseram-nos ali, como se põem montes de areia ou cascalho numa eira.

Que desolação a presença dos homens! Uma casa sórdida, de pau a pique, quase sem cobertura — e 10 quase-palhotas igualmente sujas. Eram a única nota feia, rebarbativa, naquele cabeço de onde se contemplavam maravilhas.

Quando lhe perguntei como foram os seus pais ali parar, respondeu-me simplesmente:

— Buscaram o paraíso!

Não me atrevi a perguntar-lhe o que sabiam eles, da vida e dos costumes das estrelas.

(continua)

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