quinta-feira, 28 de abril de 2011

Conto da dona Lili (II) o Tio brasileiro


O Celso Pereira, viera de Portugal para o Brasil, mais precisamente de Alhandra aonde tinha nascido e aonde se tinha iniciado na panificação.

O pai, o senhor Ilídio, padeiro, nunca tinha vingado na profissão e morrera cedo com tuberculose. Fazia-lhe mal o quente do forno do pão e como fumava muito, o ar começou a faltar-lhe, caiu doente e morreu sufocado. Um horror!

A mãe, dona Cacilda, modesta costureira mas com muita clientela fiel em Alhandra e na Póvoa de Santo Adrião, lá foi sobrevivendo e educou dois filhos: o Celso e uma irmã, de nome Gracinda, que havia de casar com uma gente da Amadora.

Celso tomara o lugar do pai na padaria e não se saía mal. Belo mocetão, bem parecido e melhor falante, aguentava as noitadas com vigor e foi começando a fazer o seu pé de meia.

O patrão tinha uns amigos padeiros que tinham ido para o Brasil e ouvia dizer que tinham enriquecido e eram já donos de vários estabelecimentos.

Celso sonhava com a emigração para terras de Vera Cruz.

Uma noite em que estava a sós com o patrão, num momento de pausa, disse-lhe:

- Vossemecê é que me podia fazer um jeito. Se falar com os seus amigos do Brasil peça-lhes que me arrumem um emprego lá nas padarias deles. É o meu sonho!

O patrão que reconhecia em Celso, bastas qualidades de trabalho, empenho e seriedade, respondeu-lhe que assim faria.

E uma tarde, chegou a tão almejada carta de chamada para Celso. Era de um Crispim que estava a começar no sertão brasileiro e queria gente moça para lá.

Celso casou no Brasil com uma sertaneja de nome Cíntia Melão, porque tinha dois “papos” que lembravam melões suculentos.

Tiveram dois filhos: Maria Alberta Pereira, a mais velha, de que adiante falaremos e um rapaz de sua graça, Borba Gato Pereira, em homenagem ao bandeirante do mesmo nome.

Borba Gato era um típico local, rebarbativo, desconfiado e rebelde. Também teve muitas aventuras, como abaixo se verá.

Só quem nasceu e viveu no sertão conhece a secreta, cálida simpatia que o sertanejo tem pela vida aventureira e nómada. Por isso ele vê sempre com um misto de desconfiança e desprezo a autoridade policial. Pode, inclusive, aparentar respeito perante um delegado ou um comandante de destacamento. Mas, no fundo, o seu coração está com o rebelde, o perseguido, o fora da lei.

É um sentimento antigo, enraizado, que se lhe perdura no sangue. Sangue tantas vezes derramado pelos esbirros do rei e pelos jagunços republicanos: aos brutais predadores de índios sucederam as milícias coloniais e imperiais; aos capitães-mor, os sargentos, tenentes, capitães e majores comandantes, montados na violência e na arbitrariedade, na maior parte das vezes implacáveis com o sertanejo, a quem sempre olharam e trataram como um bicho do mato, traiçoeiro e perverso.

Nos primeiros tempos, a lei, a lei de punir, sem receio das fraquezas dos juízes e das patifarias dos jurados, sempre escolhidos a dedo, era o bacamarte, o cacete e a faca. Funcionavam, de facto. Porque o exemplo vinha de cima, dos poderosos, do major, do capitão, do coronel, violentos e valentes – “bons, burros e bravos”.

Herança antiga, era a violência, quando os poderosos da Coroa, para justificarem os seus actos infames – assassinatos culposos e homicídios perversos – eram acobertados pelo governo que, inexplicavelmente, lhes perdoava! Daí veio a máxima: “Mata que el-rei perdoa!”.

Borba Gato tal como os seus conterrâneos sertanejos nordestinos, nutriam verdadeira aversão pelas forças policiais. A essa aversão misturava-se temor, ódio e indiferença; ao contrário do que tinham para com os perseguidos, por quem tinham igualmente temor, mas também um certo respeito e até admiração, pois igualavam-se, por vezes, como vítimas da mesma sociedade desigual, das mesmas perseguições, expostos aos mesmos sofrimentos e às mesmas agruras.

O destino ás vezes prega as suas partidas.

Celso foi prosperando, tornando-se num excelente gestor de várias padarias depois de anos de trabalho a fio, duro mas promissor como só no Brasil se pode encontrar. Foi conquistando o seu lugar de imigrante endinheirado e poderoso e resolveu fixar-se numa xácara já de grandes proporções, rica e confortável numa cidade pacata chamada Currais Novos.

Borba Gato, seu filho, não lhe seguiu as pegadas e gozava das benfeitorias que o dinheiro do pai lhe granjeava. Era um inútil, femeeiro e brigão. Parece que tinha tombado em menino numa pipa de cachaça, de tanta bebedeira que apanhava.

Em toda a sua história, Currais Novos sempre se notabilizou por ser uma cidade pacata e de gente alheia aos processos de violência urbana e rural, que se notabilizaram em outros municípios desse Estado.

Mas toda essa tranquilidade não evitou que ocorressem três assassinatos, tendo como vítimas fatais dois delegados e um cabo de polícia, mortos no exercício das suas funções, em diligências de rotina.

O primeiro, que é o que nos interessa, de que foi vítima o delegado em exercício de funções, foi morto à facada por Borba Gato, nas imediações dos fundos da Padaria Primor.

Era delegado o siô Manuel Lopes, conhecido como Manuel Lopes o “Barbudo”.

Para Borba Gato a “pistolagem” que já era “modo de vida” tornou-se “meio de vida”.

No julgamento de Borba Gato, um sargento, acabando de ouvir a sentença condenatória de longos meses de prisão, atentamente ponderou: “Está muito bom, ‘seu’ doutor. Mas só tem uma coisa: se vossa senhoria fizer isso, aqui talvez não fique nem quem diga missa, quanto mais quem a ouça!!!”.

No dizer de Cascudo, era a polícia “mantendo a ordem e garantindo a desordem”.

Todos os filhos de gente abastada, influente e poderosa, tornavam-se violentos pelas circunstâncias do meio, e respeitados a ponto de vir toda a gente submissa e assustada, pedir-lhes a bênção e tomarem-lhes o conselho.

Tal como todos os brigões, Borba Gato, tinha um medo que lhe invadia os sonhos e lhe tirava o sono, que era o de ser apanhado ainda com vida no fim de uma disputa com uma brigada da polícia.

Ao contrário do que se pudesse imaginar, tremiam quando pensavam ou mesmo sonhavam o fim que lhes esperava: um agente da policia sanguinário e com sede de vingança e de dinheiro, a separar-lhe a cabeça do corpo com um único e definitivo golpe de facalhão.

Estes pensamentos, misturados com presságios, invadiam o sono de Borba Gato e transformavam-se em horríveis pesadelos.

Borba Gato foi um dos que morreu, sob a mira da pistola de um Capitão.

Os pensamentos, os sonhos e pesadelos, tornaram-se realidade. A realidade do sertão.

É verdade que Borba Gato, ao ser fuzilado, já apresentava sinais de debilidade na sua saúde. Há muito que já vinha a ser acompanhado por médicos e tomava medicamentos, apenas pela intuição do médico e na desconfiança do “paciente”.

Havia até quem afirmasse que a cirrose precoce (pois só tinha 40 anos), já lhe atacava as “ideias”.

Celso, morreu, entretanto de desgosto, de gota e de fartura. A esposa, a dos “melões” tornara-se uma respeitada burguesa, vivendo na opulência.

Diziam as más-línguas, que mesmo antes de se tornar viúva, andava metida com um “Coroné” poderoso! Intrigas.

Falemos agora um pouco da filha de Celso: a Maria Alberta.

(continua)

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