domingo, 20 de dezembro de 2009

Portugal - Dinamarca em Paris


Havia nesse dia o Portugal-Dinamarca e o António e eu não queríamos perdê-lo por nada deste mundo. Ocorreu-nos ir à Maison du Danemark, quase ao pé do Arco do Triunfo pois poderia haver uma transmissão do jogo para os fãs dinamarqueses! Claro está que os criados eram franceses, havia jogo da França também nessa noite e estávamos a perder o nosso tempo.

Um empregado português simpático indicou-nos que não muito longe dali havia um bar de compatriotas aonde poderíamos jantar e assistir à transmissão.

Estugámos o passo pois já era quase a hora do jogo começar e quando chegámos ao bistrot, estava quase cheio de emigrantes já animados por umas quantas jolas e só nos restava um espaço sentado num patamar quase ao lado da cozinha. Sem outra alternativa, lá nos instalámos numa mesa incómoda e minúscula, cada um do seu lado.

Dei o melhor lugar ao António, até porque sendo mais franzino, impedia menos do lado de fora a passagem dos criados que se atarefavam para atender os clientes, numa casa cheia num dia de jogo grande. De ambos os lados tínhamos duas mesas iguais, uma vazia por estar num ângulo de visão em que era impossível olhar para o plasma preso na parede ao alto, e outra aonde, ombro a ombro comigo, se sentava uma senhora francesa idosa, que já tinha começado a jantar.

Posámos dois embrulhos da Fnac, contendo livros, nos tampos das cadeiras da mesa vazia, que assim continuaria sem qualquer dúvida, por dali não ser possível alcançar com a vista o aparelho de televisão, como referido.

Quando nos preparávamos para excitada e confraternalmente vibrarmos com o jogo acompanhados pelos nossos compatriotas, oiço a senhora virar-se para mim com um ar arrogante e dizer-me:

- Não pode posar aqueles embrulhos naquelas cadeiras, pois pode vir gente! Aqui em França somos civilizados e não toleramos este tipo de comportamento! Vocês são de onde?

- Portugueses, e quando chegar alguém para ocupar a mesa, logo os tiraremos, não se preocupe – respondi, sem ainda nenhum agastamento e até alguma paciência apesar do atrevimento típico dos franceses, nomeadamente os parisienses.

O jogo começou a desenrolar-se e estando atento e interessado, sinto que os cotovelos da vizinha se estendiam afrontosamente para cima de mim, comendo com os braços abertos, propositadamente. Ainda fui estoicamente, chegando-me mais para um canto, mas perdendo claro, ângulo de visão para o televisor.

Pareceu-me ser uma comensal habitual do restaurante, pois os criados respondiam-lhe com infinita paciência e no fundo não ligavam muito aos constantes apelos para isto e para aquilo, tentando corresponder amavelmente.

- Pedi couscous com goulash mas é imenso! Arranje-me uma embalagem para levar os restos para casa, mas livre-se de me fazer pagá-la! – dizia, a uma empregada simpática que a sossegava.

A excitação do jogo, a sua difícil disputa, o enervamento da equipa portuguesa e sobretudo a concentração que queríamos para o acompanhar eram constantemente interrompidos pela voz exaltada e estridente da francesa.

- Quero um gelado dos grandes, ouviu! Mas depressa, o que estão à espera para trazer! – de azanzinar um santo, e eu comecei a controlar-me para não a pôr na ordem.

Nos momentos de grande emoção, em que todo o restaurante se levantava em peso numa antecipação de um golo ou de uma grande jogada, quando nos voltávamos a sentar, perguntava-me, com modos sacudidos:

- Isto é o quê? Porque se levantam todos? Que jogo é? – e eu, sem a olhar, respondia-lhe com a voz mais correcta que conseguia e lá se ficava a resmungar.

Comecei a notar que naqueles momentos largos de solidão à mesa sem interlocutor, ainda que interrompidos pelas ordens desencontradas aos criados como se quisesse ter pretextos de diálogo com alguém, ligava um telemóvel e falava.

Entretido que estava com o jogo, não prestava muita atenção, mas seguiam-se conversas animadas e calmas, com uma voz enternecida e diferente.

Veio o intervalo, e mais tranquilo pude escutar a conversa com o destinatário de tão invulgar arrulhar de pomba, quando antes quase lhe saíam os bofes pela boca:

- Oui mon amour, tu sais que je t’aime, depuis toujours, tu sais n’est ce pas? J’ai tout mangé, c’était bon, mais je t’en parlerais plus tard. J’ai deux connards ici à coté de ma table ! Je ne sais pas ce qu’ils font ici, mais ils m’embêtent ! Je te rappelle tout de suite ! Milles baisers mon amour, je t’adore ! *

Fiquei logo de orelha alerta, pois presumi um grande amor, o ente beneficiário de tais declarações, visionava-o enterrado num cadeirão de um apartamento um pouco decadente mas mantendo o conforto de outros tempos de maior esplendor, talvez com gota, possivelmente bebendo um bom tinto e a ver ou televisão ou a ler.

Estas chamadas de telemóvel repetiam-se, sem exagero, cada 4 a 5 minutos e para além de ternurentas frases, era como se as conversas começassem em vírgula, de rompante. Que maravilha, pensei alvoroçado, com a antecipação de uma conversa com ela que me levasse a visualizar um homem distingué e o grande amor de uma amante, sempre constante na afeição malgré l’âge e fazendo-lhe companhia intelectual, narrando-lhe o que via nas suas deambulações pela cidade.

Mudámos de mesa para uma da frente e já menos pressionados pela presença ruidosa da vizinha, assistimos ao jogo até ao fim sem deixarmos um momento de fixar o ecrã da televisão.

Levantei-me cansado, mas disposto cavalheirescamente a oferecer-lhe uma flute de champagne para início de uma conversa irrecusável, quando constato que tinha partido, no meio do barulho e da minha concentração no match de football.

Com mágoa e alguma nostalgia olho uma vez mais para a mesa aonde se sentara a musa da minha inspiração e noto que deixara, seguramente por esquecimento, o telemóvel abandonado em cima da mesa.

Precipito-me para nele pegar, com emoções contraditórias, mas a primeira ideia foi a de ligar para o putativo amante, apresentar-me como um dos connard da mesa do lado, bem devia ter ouvido falar de nós, e dali logo se veria como seguiriam os próximos passos. Talvez, e a pretexto de lhe entregar o telemóvel, um encontro à porta de casa, croissants na manhã seguinte à volta de um café.

Pulso o botão das chamadas efectuadas à procura do número discado à saciedade, e vazio…tremo e vou direito aos contactos e de novo nada…

Entrego no balcão ao dono do restaurante o telemóvel oublié de Madame, e pressinto no seu olhar um sinal afável de cumplicidade, como quem diz, um dia pensei no mesmo…

Imaginer c'est choisir!

MNA

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