A justificação da ida do Presidente Soares à
Torralta, era a de entregar o prémio da Associação Portuguesa dos
Escritores (Comunistas), que se desenrolaria no auditório em Tróia.
Devo
confessar com toda a sinceridade que não só não sabia desse evento,
como fui confrontado pelo Director Financeiro com a informação de que o
cheque do prémio que o Presidente iria entregar, era “careca”, ou seja
não teria provisão!
Passei esta informação ao
meu primo General Carlos Azeredo dizendo-lhe que seria uma vergonha para
o Presidente da República entregar um prémio cujo cheque não teria
cobertura, e o Chefe da Casa Militar pediu-me para esperar enquanto iria
consultar Mário Soares, tentando dissuadi-lo.
Entretanto,
tudo se passava na frente dos sindicatos a quem eu paulatinamente
explicava que a vinda do Presidente da República à Torralta era uma
provocação ao Primeiro-ministro Cavaco Silva, que era quem tinha a
tutela da Torralta, através do Governo. Viria com toda a imprensa
escrita, rádios e televisões para entrevistar os trabalhadores e ouvir
as suas queixas e angústias e na prática, nada adiantar, pelo contrário
publicitando ainda mais a situação da Torralta que precisava de
continuar a receber turistas e passantes, enquanto a situação não se
resolvesse.
Sendo primos e tendo intimidade
suficiente, não hesitei em dizer-lhe ao telefone tudo isto em voz alta
para todos ouvirem. Estavam calados, sem nada dizer.
Veio
de lá uma voz desolada do General Carlos Azeredo, dizendo-me que o
Presidente confirmou-lhe que vinha e que quanto ao cheque sem provisão, o
problema era da Administração da Torralta. Ele entregaria o prémio e
quando o destinatário o fosse depositar, já não seria mais da sua
responsabilidade. Foi ipsis verbis o que eu transmiti aos trabalhadores, perguntando-lhes o que fariam no dia da visita e eles nada responderam!
Mais
uma vez fiquei tranquilo e pensei que tudo tinha feito para evitar o
pior. Lembrei-me de um filme antigo com o Yul Brynner chamado “The King
and I” e pensei que se poderia aplicar ao meu caso!
No
dia aprazado, o Presidente Soares aterrou de helicóptero no campo de
futebol trazendo atrás de si toda a imprensa, nomeadamente as
televisões. O percurso até ao auditório ainda era longo e eu tinha
providenciado para que o meu carro e motorista estivessem prontos para
nos levar.
Estava uma manhã linda de sol e os trabalhadores, os tais 700 e tal, alinhavam-se de cada lado, fazendo alas.
Cumprimentei
o Dr. Mários Soares que se me dirigiu afavelmente e bem disposto e me
tratou: - Como está o Senhor Presidente? Ao que lhe respondi que quem
era Presidente era ele. Respondeu-me então, que éramos dois Presidentes:
ele da República e eu da Torralta!
Pedi-lhe
para tomar lugar no meu carro e ele respondeu-me que estava um dia
soberbo e que iríamos os dois a pé, à conversa. Entretanto, não deixou
de reparar naquela mole humana de gente com um ar triste e silencioso.
Percorremos
lentamente o caminho, passando entre os trabalhadores que se mantiveram
num silêncio total e absoluto e quando chegámos à porta do auditório,
disse-me de caras:
- Dou-lhe os meus parabéns,
eu vinha preparado com a imprensa, rádio e televisões para ouvir as
queixas dos trabalhadores contra o Governo e o Senhor Presidente, por
milagre, conseguiu que estivessem calados. Como fez?
-
Saiba V.Exª que lhes disse a verdade, a qual é tudo quanto acabou de
dizer, acrescido de que ficariam ainda mais prejudicados se
contribuíssem para mais quezílias institucionais, uma vez que V.Exª nada
tem a ver com qualquer solução que se venha a encontrar para a
Torralta.
Ficámos entendidos e devo dizer que
Mário Soares que tem um charme indiscutível, dali para a frente fez com
que tudo corresse com dignidade e sobriedade, e o dito cheque foi
entregue nas condições que se lhe tinham comunicado, tendo o Presidente,
em voz baixa, dito que sabia o problema que me estava a causar, mas que
esperava que entretanto entrasse dinheiro. O montante, nesse momento,
era relevante para a Torralta pois não tínhamos sequer, em caixa, os
referidos Euros 2,000,00! Imagine-se a penúria!
Convidei
o Presidente para almoçar no terraço do restaurante do Golfe. É uma
maravilha de localização, de traçado conhecido e muito apreciado, de
soberbas vistas para o mar e o ambiente não podia agradar mais ao Dr.
Mário Soares e à sua comitiva.
Faço aqui um pequeno aparte, aliás doloroso pois hoje em dia estamos quase na mesma situação: era tudo fiado, ou seja não se pagava aos fornecedores que tinham proporcionado o almoço, o que para mim era um horror!
A
conversa entre o Presidente, jornalistas, escritores, políticos e
deputados fluía com facilidade, ajudada por generoso vinho que se servia
amiúde, e eu, muito mais novo e não tendo conspirado contra ninguém nem
nenhum regime, nem sequer ter estado no exílio, pois nem nascido era,
estava calado polidamente, como dono da casa.
A
um comentário infeliz e provocador do Presidente que aqui não
reproduzo, intervim finalmente e respondi respeitosamente, mas na mesma
moeda!
Mudou de assunto com galhardia e
resolveu contar duas divertidas histórias que tinha vivido recentemente
na sua visita de Estado, ao Reino Unido.
Afirmou
que desde que era Presidente, o Protocolo de Estado tinha recuperado o
seu devido prestígio, com apresentações de credenciais dos Embaixadores,
de fardas e condecorações, fraque e luvas cinzentas, que as recepções
em Queluz eram de gala com casaca e insígnias, enfim gabava-se de ser um
entendido, eis senão quando o Protocolo do Foreign Office inglês,
exige, sem transigir, que levasse luvas cinzentas e chapéu alto, quando
descesse do combóio em Victoria Station e fosse ao encontro da Rainha,
que aí o esperava. Confessou com simplicidade que se atrapalhou, pois
nunca o tinha usado, mas levava-o na mão e assim cumprimentou Sua
Graciosa Majestade.
O Dr. Mário Soares,
acrescentou com bonomia que continuava a não saber falar inglês, mas que
a Rainha e a Família Real, eram impecáveis no domínio da língua
francesa, pelo que antes de tomar a carruagem aberta em direcção a
Buckingham, perguntou à monarca o que devia fazer com o chapéu alto!
A
Rainha Isabel, conta o Presidente, disse-lhe: - Em primeiro lugar
ponha-o na cabeça e depois quando nos aplaudirem, tire-o e acene com
ele. Dei uma forte gargalhada e naquele momento, esqueci-me do que
aquela vinda poderia ter causado e apreciei o Homem, pois tinha tido
muita graça.
Não contente com este episódio,
narrou que estando num banquete oferecido pelo Mayor de Londres, tinha
de cada lado a Rainha-Mãe e a Rainha Isabel.
Acrescentou
que já tinham dito tudo uns aos outros tendo-se, por isso, criado um
certo silêncio entre eles. A Rainha-Mãe era pequenina de estatura, por
isso veio um criado trazer-lhe um banquinho para os pés e uma almofada para ficar ao nível de todos.
De repente a Rainha-Mãe, vira-se para o Presidente e pergunta-lhe: - O Senhor é religioso? O
Dr. Mário Soares, respondeu: Eu não, minha Senhora! - Ora ainda bem,
retorquiu a Rainha-Mãe, pois assim podemos conversar sobre outros temas,
pois tenho ao meu lado o Arcebispo de Cantuária que só me fala de
assuntos maçadores de religião!
E assim
termina o meu filme “The King and I”. Acompanhei-o ao helicóptero,
despedi-me e voltei a encontrar-me muito mais vezes com ele fruto da
minha vida profissional guardando sempre, entre nós, uma boa recordação
destas histórias tão picarescas.
Pena, que as pessoas não saibam sair a tempo!
O resto da minha experiência na Torralta, não é preciso contar pois é conhecido.
Pertence
hoje em dia aos Grupos de Belmiro de Azevedo e de Américo Amorim, que
estiveram mais de 8 anos para poderem começar as obras e agora, que
estão acabadas, dá gosto visitar, ficar por lá e gozar o esplendoroso
cenário e tudo quanto lá se desfruta.
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