quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Carta ao meu primo Luis Bernardo - à escuta



Meu Caro Luís Bernardo,

Por cá os tempos vão complicados. Sabes, não apetece nada estar bem-disposto, não sei se me percebes? Quase tudo corre mal, nas famílias, no país, na Europa e no mundo. 

Tantas frases sublimes escritas por inúmeros autores do passado e do presente, metidas a martelo e fora do contexto actual, consolando, tentando descrever situações anormais como normais, intuindo que o sofrimento, o desespero, a indigência, o abandono, hão-de passar em breve.

Nunca houve tanta gente a pedir esmola, disfarçadamente, baixinho, às portas dos supermercados, lojas, metropolitano, estações de comboio e até no aeroporto, para não falar nas ruas. 

Falta vontade para acreditar num futuro, a maioria nem sabe como vai viver nos próximos meses.

O Papa sai, até ele, sem forças para aguentar o peso do mundo, mais do que da idade, parece-me, mas não estou dentro do Vaticano.

Diz lá o que achas, pois deves estar bem informado. Vale a pena comprar coroas suecas ou norueguesas? O euro vai soçobrar? Como vamos viver na velhice? Vem aí o Anticristo? Acaba o mundo para breve?

É urgente que me respondas pois tenho cerca de 48.000 leitores no meu blogue que acreditam no que me escreves e sobretudo nos teus conselhos. Vê lá não nos desapontes e sobretudo não te enganes, caraças!. Encontrei uma nota de cem escudos por detrás de uma gaveta que caiu com estrondo: achei de mau agoiro.

Ouve lá, consigo contactar com o Ministro das Finanças por e-mail e ele simpaticamente responde-me a perguntas objectivas, é claro, nada do meu interesse pessoal, por isso se tiveres alguma recomendação aproveita.

Pergunta por curiosidade ao Salazar o que ele faria se estivesse nestes assados, e também já agora ao Cunhal pois sempre pode dar jeito um ditador de esquerda – ia tudo de cana e dava um certo gozo ver o Oliveira e Costa, o Vara e o Dias Loureiro bem como o inefável Sócrates e quejandos a pagarem pelo que nos fizeram - , e olha e porque não ao D. João II, o Príncipe Perfeito…enfim, a quem tu encontrares por aí e que te pareça de confiança. Não percas tempo com os Apóstolos nem com gente antiga, não percebem nada de nada. Deixaram o patrão acabar mal.

Hás de um dia destes apurar se a Eva sucumbiu a uma maçã, havendo tantas frutas tão mais saborosas ou se é tudo treta.

Eu por mim gosto mais de nêsperas!

Um abraço muito amigo do teu primo muito afeiçoado

Manuel

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

bonsai

 

Il y a des moments où tout réussit. Il ne faut pas s'effrayer. Ça passe.

J. Renard

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Pai, estamos pobres?

"Pai, estamos pobres?"
Estremeceu ao ouvir esta simples questão a qual, embora com apenas alguns laivos de racionalismo não apresentava nenhuma inocência. Perante um olhar taciturno mas simultaneamente despreocupado, ficou impotente para responder com o imediatismo necessário, tal como era hábito.
- Pobres? Sorriu engolindo em seco.
- De modo algum. Como poderíamos estar pobres se nunca fomos ricos?
Obviamente que para uma criança de cinco anos estava a ser confuso ver desaparecer alguns objectos da casa, diminuir o número de horas em que à noite se via televisão, entre outros cortes necessários para uma gestão eficaz, eram estas as palavras. O facto de ter saído do colégio deixando para trás amigos de sempre tinha sido difícil de ultrapassar, assim como a inexplicável presença dos pais em casa a horas que habitualmente seriam de trabalho. A simples pergunta "nunca mais me levaste ao teu trabalho" levou dias a ser respondida até que se conseguisse uma explicação possível, o que nunca aconteceu.
A palavra pobre soava como trovoada seca numa noite de Verão, como um trapezista a quem falha por centímetros a barra e verifica que sempre esteve a actuar sem rede. Foi assim que conseguiu acalmar uma mente exigente e traidora, sem escrúpulos, que não tinha feito soar as campainhas de alarme quando todo o baralho já se inclinava para um dos lados.
O despedimento foi como um murro no estômago. Na verdade o mundo estava a mudar, mas, que diabo, nunca pensou que fizesse dele bode espiatório. Fez e não foi meigo. A parca indemnização foi abatendo algumas dívidas e o subsidio dava apenas para uma refeição diária. Apenas a filha usufruía de todas as que tinha direito, sem saber no entanto que a última - também questionada pela sua hora tardia - era já fruto de caridade.
Sim, estavam pobres. Envergonhadamente pobres.
"Mãe, estamos pobres?"
Com um sorriso que só as mães sabem exprimir, afagou-lhe o cabelo rebelde e acenou com a cabeça. Estavam na realidade pobres.
Já não conseguia contar o tempo passado no campo de refugiados, sob lei marcial e uma guerra sem tréguas. Vira ser-lhe tirado o único filho ainda vivo e guardou sem gemidos a dor proveniente de violações sucessivas. Sabia que jamais iria esquecer, mas essa não era a prioridade no momento. Sobreviver era a única chama que lhe alimentara o espírito nas longas noites de bruma.
Sabia por rumores aqui e ali que o filho permanecia vivo. Mas o campo era enorme e os movimentos toldados pelos vários grupos armados.
Por uns tempos pensou que o fim tinha chegado. Luas passaram sem uma mão de arroz ou uma colher de água. A insalubridade instalou-se e a vergonha desceu o seu manto negro, levando-a à doença. Desnutrida, foi-lhe colocado o sinal redondo vermelho à volta do pescoço : prioridade mínima. Adormeceu.
Por esses dias o movimento no campo alterou-se e começaram a ouvir-se mais gritos que gemidos, mais velas que escuridão. Retiraram-na do canto onde se encontrava tolhida e colocaram-na a soro. Gradualmente alguma força voltava aos seus braços e as mãos já conseguiam suster a pouca água de arroz que lhe forneciam duas vezes ao dia. Os voluntários da paz tornaram-se os seus mais íntimos confidentes.
Dois anos depois, o campo era já uma miragem dolorosa mas passada. Um casebre de duas pequenas divisões onde coabitava com o filho entretanto recuperado, fizeram voltar o brilho a uns olhos castanhos um dia quase corroídos pelos insectos.
Sorrindo, afagou mais uma vez os cabelos do pequeno. Sim, estamos finalmente pobres.
JCL

sábado, 9 de fevereiro de 2013

o piano

Um dia desistiu das palavras, de todas as palavras com que em vão tentou fixar o que não se deixa fixar, captar, dominar, destruindo a vida, a sua própria vida. Começou a tocar piano e não parou mais de tocar.

Pedro Paixão