sábado, 16 de agosto de 2014

A liberdade perdida - Crónicas - Apresentação



Nunca pensei que a visita a prisões me pudesse provocar profundas transformações na minha maneira de encarar a noção de culpa.

Estas duas aulas semanais de duas horas cada, que dou a reclusos estrangeiros de alta segurança, puseram-me em contacto com pessoas de várias nacionalidades. Assim sendo as aulas são faladas simultaneamente em inglês, francês, espanhol e esporadicamente em italiano. Sem referir claro que também falo em português, pois o objectivo é o ensino da nossa língua para adultos estrangeiros.

O primeiro embate foi tremendo, pois apesar de já ter no passado feito este tipo de voluntariado em outras prisões e ir começar a partir de Setembro um projecto piloto para as reclusas de Tires, nunca tinha entrado numa prisão de Alta Segurança do Estado.

Tenho um pouco de claustrofobia, mas nada de perder o domínio, mas detesto uma série de coisas que não vou mencionar aqui pois não é de mim que quero falar, por isso quando na primeira aula me encontrei fechado a sete chaves numa sala não muito grande, com guardas do lado de fora, com uma câmara permanente de vigilância, tive um certo baque interior.

Não me preocupava a segurança com os reclusos que iria conhecer, pois o Director dissera-me que tinham sido escolhidos a dedo. Eram inteligentes e tinham penas elevadas e complicadas.

Tinha dado aulas de Direito na Universidade e no Liceu de Macau, quando lá vivi e trabalhei em Hong Kong. Nunca, porém, a principiantes. Mas gosto de desafios e não me tenho saído mal, pois eles progridem e já vou falando mais em português, sinal de que estão a absorver os ensinamentos.

Na última meia hora de cada aula, deixo tempo para conversarmos sobre tudo sem restrições.

Como me apetece tratar este tema para poder captar um maior interesse de potenciais interessados/as em me ajudarem num projecto de que vos falarei mais adiante e tentar consciencializar a sociedade civil para a reinserção social após o termo do cativeiro, terei que usar da minha criatividade e imaginação para relatar o que vou presenciando, sentindo e o que proponho para melhor ser bem sucedido nesta minha tarefa tão reparadora, sem contudo por em causa a confidencialidade de tal actividade.

Tenciono publicar uns contos sobre o testemunho do que for observando, mas reconheço que este é um tema que incomoda, provoca sensações contraditórias e tende a que as pessoas, tal como em relação à morte, sintam uma certa repulsa e tentem afastá-lo da mente. 

Pois eu sinto-me impelido a extravasar sem temor o que me tem feito bem, me tem limpo a alma e a cabeça, me expele preconceitos, me impõe maior tolerância e rigor na análise das motivações dos actos dos outros e enfim me ajuda a aperfeiçoar os meus sentimentos.

Garanto-vos que a cada vez que lá vou, consigo desligar-me das minhas preocupações, problemas, estados de alma, angústias e tão só pela simples razão de que me esqueço de mim próprio.

É um bom exercício de humildade, entrega e despojamento o que é importante pois não há tentações do ego para me vangloriar. Não há tempo e o que se observa é tão vasto e complexo, que quando se sai e se volta a respirar o ar livre, é como se trouxesse um aviso para olhar para a minha vida e triar o essencial do acidental.

Os/as minhas benevolentes leitoras do blogue e facebook impelem-me a escrever e por isso encaro este desafio como mais um motivo de ocupação dos meus escassos tempos livres.

Ler e escrever sobre o que se observa é um meio-caminho para um fim de vida mais tranquilo, quase como que um abandono leve e suave á inesperada vinda da morte. Quase nada fica para fazer que não tivesse passado por um crivo de maior rigor e serenidade na análise. O resto são minudências…

Por isso, em guisa de apresentação, deixo aqui o habitual (continua) quem sabe com que cadência, mas na certeza de me apetecer mergulhar nesta apaixonante crónica da liberdade, que tão difícil e dolorosa parece ser de alcançar para quem está em reclusão.

(continua)

Sem comentários:

Enviar um comentário