quarta-feira, 8 de junho de 2011

Memórias do cárcere (6) o meu preceptor africano


Manuel Candeeiro de Deus todas as manhãs me aprontava para a escola.

Era reconfortante ser acordado por uma voz quente e sobretudo por uma fiada de dentes brancos imaculados a sorrirem abertamente para mim.

A minha mãe estava sempre a dormir a essa hora. Ou porque tinha tido um cocktail ou um jantar até tarde na véspera, ou porque gostando de acordar pelo meio-dia, podia dar-se ao luxo de ter criados pretos em número suficiente para lhe tratarem da casa e nomeadamente o fiel Candeeiro de Deus para lhe olhar pelo filho.

Só quando voltava da escola pela tardinha é que encontrava a minha mãe. Às vezes nem isso pois ou era um chá social ou tinha ido às compras com as amigas.

No entanto, antes do meu jantar vinha sempre ao meu quarto dar-me um beijo, inquirir vagamente sobre os meus deveres escolares e tentar afectadamente dar-me algum carinho.

O meu pai, como já antes referi, estava muitas semanas ausentes na selva, mas quando vinha tentava compensar-me com uma presença assídua junto de mim. Abominava a vida social e fútil da minha mãe.

Mais tarde, já mais crescido, vim a constatar que tinham um acordo de vida em comum sem se hostilizarem, cada um pelo seu lado. Muito típico da boa sociedade colonial, especialmente a de Lourenço Marques.

A minha mãe tinha uns flirts com vários homens ricos e ociosos que a acompanhavam nos seus programas, jantares e festas, mas não passava disso. Nunca se ouviu falar de nada concreto nem mais ousado.

No caminho para a escola, o meu fiel preceptor falava-me de tudo. Em mais pequeno contava-me as histórias que todas as crianças gostavam de ouvir mas como estávamos em África, acabavam sempre por meter um leão chamado Shani, que no idioma macua significa « maravilhoso ».

Ora o Shani povoava os meus sonhos pois era valente, justo e bondoso para os animais indefesos que protegia contra os predadores. Claro que Candeeiro de Deus nos seus relatos valorizava o « amigo leão » ensinando-me a respeitar a natureza e os seres vivos da selva.

Um dia perguntei ao meu pai porque matava os animais, nomeadamente leões e elefantes, contando-lhe as histórias que ouvia e ele ficou furioso. Vim a saber que se zangou com o criado e o proibiu de me voltar a falar de tais assuntos.

Candeeiro de Deus, respeitador e obediente, mudou de temas e as histórias passaram a ser sobre a vida dos pretos nas aldeias da sua tribo bem como os seus hábitos e costumes.

Sentia-me tão perto dele, assimilando tão naturalmente toda a cultura e formação que me ia dando, que me pareceu natural pedir ao meu pai para ir passar umas férias na aldeia natal do meu preceptor.

Os meus pais falaram entre si e disseram-me redondamente que não, que era um disparate e que um filho de patrões brancos não acamaradava com criados pretos.

Isto passou-se quando eu já eu tinha os meus 15 anos tendo ficado indignado, revoltado e durante um mês não falei em casa, respondendo aos meus pais por grunhidos. Não se importaram muito, pois as vezes que com eles estive foram tão poucas, que acho que nem tomaram esta minha atitude como retaliação.

Uns anos mais tarde e já maior, decidi ir com Candeeiro de Deus passar um mês das minhas férias de verão à sua aldeia perto de Nampula.

Os Macuas - povo da floresta - são uma tribo de origem banta. Em tempos habitavam na zona dos Grandes Lagos (República Democrática do Congo). Depois deslocaram-se em direcção ao sul da África. Actualmente são o grupo étnico mais numeroso de Moçambique. Eles são um povo caracterizado pela sua inclinação natural para o sorriso, que se traduz muitas vezes em sonoras e prolongadas gargalhadas.

Para a tribo Macua, o sorriso é um sinal de amizade e de que se pode criar uma boa relação. Quando chega alguém que não conhecem, sorriem-lhe na mesma. Deste modo, ele saberá que não tem nada a temer. Os macuas recorrem também ao sorriso para apagar as ofensas. O ofendido, por sua vez, espera que aquele que o ofendeu lhe retribua outro sorriso para demonstrar que não queria ferir-lhe o coração. Basta um sorriso e acontecerá a reconciliação.

Tudo isto me foi dito por Manuel Candeeiro de Deus antes da minha partida.

(continua)

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