Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata
Deus
me livre de ser normal. Cruz credo, Ave Maria três vezes. Ah não,
número ímpar, empata a vida. Pé direito, pé esquerdo. Bate na madeira.
Pula! Não pisa na linha. Desvia o chinelo, se não sua mãe vai morrer. É,
não tem jeito, a gente se deixa dizer por aí. Não há sintoma que
aguente ser prisioneiro em nosso inconsciente. A gente sai na palavra
trocada, sai desastrado derrubando as coisas no chão. Sai nos tropeções
pelas quinas da casa. A gente se confunde e se entende no sim, no não,
no é, não é, talvez. Nem sei. Deixa para lá! A gente se esquece nos
objectos largados para trás. O que fica é um pedaço nosso no lugar de
onde não queríamos ter saído. A gente sai também nos desvarios que
sonhamos, na capacidade de imaginar, no alcance dos nossos pensamentos.
Se há revolução, podemos sim ser Napoleão, para tirar sarro do
desespero. Se tentam nos consertar, podemos convocar Dorothy Gale,
curiosa, contestadora — afinal, para que serve um coração? Se tentam
amarrar nossos pensamentos, podemos ser Peter Pan. Pensa numa coisa boa
que a gente voa. Pensa numa coisa boa. Pensa! E voa mesmo. Eu já vi
muita gente voar pensando.
Então olha, não se cure além da conta,
já dizia a psiquiatra Nise da Silveira, gente curada demais é gente
chata. Gente muito curada é exactamente o que os outros querem que ela
seja. Ela é todo mundo, menos ela. É absolutamente, perfeitamente
normal.
— Ei, alguém aí pode, por favor, nos curar dessa ideia maluca de sermos normais?
Ora,
não se cure de alguns exageros, principalmente o de amar. Não se cure
daquele desejo esperançoso de felicidade. Para que curar saudade boa?
Não se cure de todas as manias, de todos os medos, de todos os tiques.
Não se cure além da conta. Somos todo esse barro amassado, constituído
na falta, entre o feito-desfeito. Somos a casa erguida a partir daquilo
que nós decidimos fazer do que fizeram connosco. Remendo a remendo,
percebe-se que existe algo em nós tentando manter a casa em pé.
Portanto, não se cure além da conta, não se cure tanto assim. A casa
pode cair!
Não se cure de rir alto, de cantar alto, de sonhar
alto. Não apare todas suas arestas. Não apague todos os prejuízos. Não
há necessidade de nos curarmos tanto de nós mesmos. Para que tanto
juízo? Para que tanto conserto? Não se pinte além da conta, não se
obrigue além da conta, além da vida. Mas sim, pague a conta por topar
ser exactamente quem se é. Por que curar todos os pensamentos malvados,
desvairados? Ninguém é todo Deus ou todo diabo. Você pode parar de
artificializar a felicidade se quiser, será que precisamos mesmo de
todos esses remédios? O receituário dos dias é categórico: precisamos
viver sem tanta contra-indicação.
Se tiver que se curar, se cure
da dúvida acerca da vida que leva e na qual não se reconhece. Essa é a
dose anti-hipocrisia mais indicada à sobrevivência da espécie de gente
feliz. Se cure até a medida de estar em paz, você com você. Nenhuma
pílula a mais.
Ruth Borges.
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