Desde que a Mãe morrera, Luís vivia sozinho na Quinta da Esteva, perto de
Anadia. A entrada era através de um portão senhorial, com um arco de pedra
sustentado em duas colunas com as armas dos Canedos.
Estes Canedos, provinham de uma antiga família de Castela que tinha servido
os diversos monarcas e viera para Portugal numa das múltiplas incursões ao
longo dos séculos.
Na sala principal, com tectos de caixotão e uma lareira antiga com uma
bordadura de pedra aonde Luís expusera uma série de fotografias da sua Mãe,
estava por cima pendurado um retrato
pintado de Don Pablo de Orilla y Valdesqués, antepassado da família nos princípios
do século XIX, solteiro, muito bem-parecido, de olhos azúis e tez clara e de
cabelos aloirados.
Luís sempre se perguntara sobre a história deste parente, e tanto do Pai
como da Mãe só conseguiu arrancar que era considerado na família como um
excêntrico.
Sentia uma enorme atracção pela figura do retratado e quando de noite, com
insónias, vinha para a sala, olhava-o na penumbra e tentava adivinhar o seu
passado.
Quando terminou os seus estudos em Coimbra – uma licenciatura em História –
regressou a Anadia e trouxe a memória de poucos amigos da vida académica.
Sempre se dera com os filhos dos caseiros, e a amizade que tinha pelo Leandro,
era a de um verdadeiro irmão, como se de sangue se tratasse.
A família Serro, já servia como feitores dos Canedo desde há cinco gerações
e eram tratados com toda a confiança e consideração, sempre tendo sido muito
respeitados.
Tinha, aliás, havido no passado, um episódio que estreitou ainda mais os
laços de mútua admiração, pois um Serro tinha salvado um Canedo de ser morto
durante as invasões francesas e evitado que a Casa fosse pilhada.
Luís passava os dias consultando o arquivo da família, no secreto desejo de
encontrar algum traço sobre a vida e existência de Don Pablo de Orilla.
Leandro era um rapaz bem encorpado, com olhos azuis e cabelo aloirado e
parecia tudo menos um moço do campo. Tinha um garbo e uma presença que era
muito falada por toda a gente.
Os seus pais, tinham nele muito orgulho e destinavam-lhe um futuro distinto
do de ser filho de caseiros. O Pai de Luís tinha-o mandado educar no liceu de Anadia pelo que ele tinha
umas letras e uma sólida formação. Era desportista e jogava à malha como
ninguém nas cercanias, corria, caçava, pescava e atirava ao arco.
Pelo seu lado, Luís era também alto e delgado de corpo, olhos castanhos
pestanudos, mãos de pele muito branca e dedos fininhos, pouco mexido, apesar de
fazer algum exercício diariamente pois gostava de passear, embrenhando-se pelas
matas da Quinta, durante boa parte do dia. O seu passeio preferido era ir até à “fonte dos amores”, aonde se dizia ter o poço, uma água que enfeitiçava
quem a bebesse. Passava horas melancólicas, em silêncio total e em contacto com
a Natureza.
Um dia, Leandro andando à caça por aquelas paragens, encontrou Luís junto à
fonte. Abraçaram-se e começaram a conversar. Já não se viam há uns meses, pois
este último tinha ido fazer uma viagem pela Espanha e tinha estado em Castela.
Descreveu-lhe como tinha gostado, e a conversa fluiu sobre outras frivolidades.
Às tantas, Luís falou-lhe no quadro grande por cima do fogão da sala e do
intrigado que andava em tentar saber mais sobre o seu antepassado, e olhando
para Leandro que o escutava de perfil com um raio de sol iluminando o seu
rosto, estremeceu, pois achou parecenças entre os dois. A cor dos cabelos e dos
olhos, o porte: mas disfarçou a emoção pois concluiu que se tornara numa
obsessão.
Regressando a casa, pôs-se de novo a pesquisar os documentos da época e
encontrou um testamento de um antepassado, que deixava os seus bens e a quinta ao seu
descendente Don Pablo e a uma filha, tida fora do casamento, um legado em
dinheiro e um anel de ouro com uma safira, em homenagem à cor azul dos seus
olhos. E mais não dizia, nem indicava o nome da legatária.
Luís ficou a cismar e decidiu que havia de conversar com
Leandro sobre o anel e o legado, pois achava uma descoberta fascinante e um
progresso nas suas pesquisas.
Continuando a folhear papéis, encontrou um envelope fechado e lacrado com as
armas dos Canedo e com uma inscrição: Abrir só em caso de necessidade.
Datava do princípio do século XIX e a tinta e letra mantinham-se em bom
estado de conservação.
Luís, excitado, partiu o lacre e desdobrou o documento que continha um
texto que o surpreendeu, pois acabara de encontrar a resposta às suas dúvidas.
Mandou recado a Leandro para se encontrarem a seguir ao jantar na Casa da
Quinta e esperou ansioso que as horas passassem.
Assim que Leandro entrou na sala, de camisa branca impecável aberta no
peito, com umas calças justas de algodão e o cabelo loiro descaído sobre a
testa, de repente parecia que o retratado tinha saído do quadro e que Don Pablo
de Orilla estava vivo e ali presente.
Abraçaram-se e Luís disse-lhe de chofre:
- Já viste que és igual ao do quadro?
Leandro, olhou devagar e ficou calado uns momentos.
- Talvez, mas como seria possível tal coisa? – concluiu.
Luís falou-lhe da carta lacrada, e começou a contar-lhe sobre o que
descobrira:
- o meu Trisavô, deixou escrito no testamento que entregassem dinheiro e um
anel de ouro com uma safira a uma filha bastarda, cujos olhos azúis, eram assim
lembrados na pedra preciosa.
Leandro, com uma enorme estupefacção, confirmou a Luís haver em sua casa um
anel que correspondia a esta descrição.
E Luís continuou: a carta descrevia que o seu filho segundo, de nome Pablo,
não gostava de mulheres, pondo em risco a sucessão no vínculo o que muito o entristecia. Narrava ainda que andava perdido de amores por
um dos filhos dos caseiros, o que o fazia ter que guardar este segredo, pois a
filha fóra do matrimónio que tivera, era da mulher do feitor e por isso mãe, do
dito amante do seu filho.
Ficaram ambos em silêncio, e após uns bons minutos, caíram nos braços um
dos outro, tratando-se por primos e Luís mandou abrir uma garrafa de xerez para
comemorarem a nova descoberta.
Dizem as crónicas que os pássaros que poisavam na árvore em frente do
quarto de Luís viram, através da janela entreaberta, os dois primos, pelo
nascer do sol, muito abraçados na cama e com os lençóis em desalinho.
In "Contos breves" de Vicente Mais ou Menos de Souza
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