“SOBE”, grita o homem correndo para o elevador lotado, prestes a
iniciar sua viagem rumo ao topo do prédio comercial de 20 andares. A
essa hora da manhã, perder o elevador significa chegar atrasado ao
trabalho, então ele corre mais rápido. Nenhuma das tantas pessoas já
embarcadas faz qualquer esforço para ajudá-lo em sua empreitada. Ninguém
segura a porta de aço, ninguém aperta o botão que retarda a partida da
nave, ninguém sequer lhe dirige um olhar de solidariedade e torcida,
“corre, pobre diabo, você vai conseguir, eu acredito em você”. Nada.
Ninguém.
Agora é ele e somente ele contra o tempo e as próprias forças. O
elevador começa a fechar as portas, o homem corre ainda mais veloz e os
passageiros do lado de dentro o assistem indiferentes, imóveis. Ele já
prevê a si mesmo sozinho, do lado de fora, maldito excluído, marginal
fracassado, enquanto seus colegas desconhecidos seguem impolutos rumo ao
topo. Ferido no orgulho, ele tenta uma vez mais. Não, ele não será
abatido assim tão fácil. Não sem luta. E num último impulso ele estica o
braço e alcança a porta do elevador com as pontas dos dedos, no
instante exato em que suas duas metades se encontrariam. Ele conseguiu!
Parabéns, bravo homem! Você é um feliz passageiro do cubículo de aço e
lâmpadas e botões que ganhará as alturas.
Seus colegas de viagem não conseguem esconder a frustração de vê-lo
ali, vitorioso, impávido, prova viva e inconteste de que o esforço ainda
é capaz de superar a indiferença e a idiotia. Ele diz “bom dia”.
Ninguém responde. Uma por uma, ele examina as caras dos cretinos
cabisbaixos, macambúzios à sua frente. Repara suas expressões de pressa e
autoimportância. Observa o jeito apático e previsível como transferem
os olhos do chão para o teto, do teto para o chão.
Ele enxerga esses homens de terno e gravata insistindo em encontrar
sinal no celular! Olha essa velha com expressão de bruxa má e rugas de
quem apanhou da vida muito mais do que bateu. Olha essas moças de
cabeleira escovada emanando perfume melado, o jeito cabreiro de presa e
os gestos forçadamente defensivos de quem espera que todos ali estejam
prestes a avançar sobre elas, rasgar suas roupinhas de grife compradas
em vinte prestações no cartão e violar suas carcaças depiladas e acima
do peso. Na ótica perversa e estrábica das donzelas, todos ali são
tarados potenciais, inclusive a velha bruxa, esperando a hora de
atacá-las. Coitadas, as moças mal sabem o quanto são tão pouco
atraentes. Nem desconfiam de que para o mundo elas sequer existem.
Como também inexistem esses dois sujeitos fortões, apertados em suas
camisetas de algodão, enamorados de si mesmos, paquerando seus próprios
contornos no espelho ao fundo do elevador. Então ele repousa a vista
sobre a grávida de ar amargurado, triste, sozinha, entrando decerto nos
últimos dias de gestação. Ele espia de frente todas aquelas pessoas ali.
Tão diferentes, tão iguais. Tão incapazes de mirá-lo de volta e dizer
“oi” ou “bom dia” ou “tá olhando o quê?”. Nem um olhar sequer.
Resignado, ele desiste e respira fundo. Mas que cheiro é esse? Que
cheio horrível é esse surgido no momento exato em que ele inspira o ar
com toda a vontade? Sim, é isso. Não bastassem o combustível tão caro, o
aluguel que subiu de novo, o chefe que o espera irascível, a violência
urbana e a estupidez coletiva, alguém ali tivera o desplante de piorar o
desastre. Alguém acaba de liberar seus gases intestinais em pleno
elevador. Quem foi o porco?
Teria sido a velha bruxa? Sim, foi ela, frouxa, as pregas sucumbidas
ao massacre de existir. Ou foi um dos fortões? Decerto, entupiram o
organismo de esteroides e vitaminas de cavalo até ventarolar a névoa do
inferno. Desgraçados. E os executivos cínicos? Claro! Só pode ter sido
um deles! Escondidos na pretensa polidez de suas gravatas, saem por aí
com ar superior exalando seus fedores por baixo. Perversos. Mas e as
moças de escova? Sim! Ele pensa em como se deixou enganar por elas.
Foram elas! Tão dissimuladas ao ponto de orvalhar gotículas invisíveis
de estrume no ar enquanto encaram as próprias unhas decoradas com
esmaltes de nomes excêntricos.
O fedor sobe, recende, piora. Espalha-se por todo o cubículo prateado
como uma praga das trevas. Um bodum intenso, torpe, saído das tripas de
um lagarto gigante em estado terminal. Uma das moças leva a mão ao
rosto e fecha as narinas com os dedos. Mas que bela mula, ele pensa. Na
minguada cabeça dessa estúpida não entra o óbvio: ao fechar o nariz, ela
se põe a inspirar a nuvem intestinal pela boca.
Aos poucos o ar se torna pesado, a caatinga persiste, perdura. E
finalmente as pessoas se olham, se percebem. Inquisitórios, os
desconhecidos se encaram em silêncio de tumba, enquanto se dirigem
olhares de acusação recíproca. Quem foi? Quem foi o sujo? O culpado
precisa aparecer. Então, traída pela sensibilidade de sua própria
situação, a grávida sucumbe ao clima opressivo e se entrega sem dizer
palavra. Em seu rosto redondo de gestante, a fraqueza se faz evidente e a
autoria do flato, inegável. Foi ela!
Mas esperem. A infeliz não tem culpa! A essa altura da gravidez,
segurar os próprios gases é uma tortura. Se pudesse, ele gritaria tal
argumento para todos ali. Mas não. Ele pondera, repensa e, finalmente,
compadecido da situação de sua colega gestante, é tocado por uma
revelação. De súbito, ele se vê em meio ao instante que vai determinar o
rumo de sua existência, a chance que poucas vezes na vida se dá a um
sujeito banal e sem graça como ele. A oportunidade que não se pode jogar
fora.
E num sensacional gesto de grandeza, o homem se coloca na linha de
tiro entre a indefesa mulher prenhe e os olhares acusatórios que a
fuzilam impiedosos: “FUI EU!”.
A porta do elevador se abre, os passageiros fogem apressados,
aliviados, para fora da câmara de gás. Todos de uma vez, como o estouro
de uma boiada, escapam para longe do ambiente repulsivo. Todos para
fora, menos ele. Ele permanece ali, no interior da máquina. Sozinho,
parado, satisfeito por ter sido capaz de uma coisa grandiosa em sua
vidinha ridícula de pagador de contas.
Do lado de fora, a mulher grávida olha para trás, segura a barriga,
encara tímida o seu defensor e desabafa sincera: “SEU PORCO!”.
André J. Gomes
sexta-feira, 23 de janeiro de 2015
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