sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Fecha-se hoje aquilo a que decidi chamar o “meu ciclo de Natal”


Fecha-se hoje aquilo a que decidi chamar o “meu ciclo de Natal”. Resolvi dedicar este ano um bom bocado de tempo a várias terceiras pessoas, começando pela minha Família e incluindo a visita a presos e a um centro de acolhimento de toxico-dependentes no Beato, a quem servi o jantar e a consoada na véspera de Natal.

Como já faço isto há vários tempos, nomeadamente no trabalho como voluntário da CV na prisão de Alta Segurança do Estado em Monsanto, dando aulas de Português para estrangeiros reclusos, sinto-me completamente tranquilo em partilhar estes meus pensamentos com os meus leitores, pois não me prende qualquer intuito de "louvaminhice" ou de falsa virtude.

Faço porque gosto e me faz bem e sinto que também os destinatários me retribuem em afecto, amizade e confiança. E temos todos aprendido entre nós, como é tão mais compensador usar a verdade e a bondade, como as principais ferramentas da nossa vida. Têm sido umas boas e eficazes “explicações” destas duas matérias que recebo dos meus reclusos, que sendo prisioneiros de “topo”, têm uma enorme categoria.

Tinha-me oferecido hoje, dia 26, para além de visitar os “meus” reclusos, pôr-me à disposição de alguém que não tivesse recebido ninguém, ou pelos familiares não terem capacidade material para se deslocarem do estrangeiro ou vontade de o fazer, ou pura e simplesmente estarem sozinhos neste mundo.

Começo pelos meus habituais alunos: escrevi-lhes uma carta a cada um para poder chegar pelo correio antes do dia de Natal, o que assim aconteceu e disseram-me hoje que me tinham respondido, coisa que muito me alegrou. Cartas entre ambos com profundidade, poemas, textos e divertimento "de amigo para amigo" dizem eles e eu concordo.

Depois foi-me distribuído um recluso de 39 anos, de nacionalidade mista – portuguesa/estrangeira – com uma pena pesadíssima, de cerca de 20 anos, tendo já decorrido 5 anos.

Em vez de ser frente a frente, deram-me a hipótese de experimentar o chamado “parlatório” em que cada um fala através de um vidro grosso e por meio de microfone. Nunca me tinha acontecido em Monsanto.Correu muito bem e vou continuar a acompanhá-lo, inclusive falar com a família no estrangeiro para os ajudar a virem visitar o seu marido e pai.

Não sabe ler nem escrever e sendo um homem com talentos musicais, estava sereno e triste. A cadeia de alta segurança é muito pesada e restritiva de confraternização e companhia, passando cerca de 90% na cela individual.

Eu não quis inteirar-me do conteúdo do seu crime, ainda que ele me tivesse mencionado por sua iniciativa e propus-lhe um plano de vida:

a. Traçar uma linha bem nítida entre o passado e o presente.

b. Sózinho, na cela com o tempo imenso que tem, por uma vez ir bem fundo e olhar-se a si mesmo com verdade e sem desculpas aparentes e reconhecer o que fez de mal.

c. Depois, tal como se o coração estivesse cheio de espinhos entrelaçados que impedem que bata livremente, mesmo com dor ser ELE que arranca esses espinhos para sempre. Fica resolvido e não se engana mais a ele próprio e o coração já pode bater de novo livremente.

d. A seguir vou-lhe facilitar que comece a aprender a ler e escrever. Sempre ocupa o tempo e sobretudo pode exprimir-se de outra maneira com a família e terceiros bem como tomar conhecimento de tanta coisa fantástica que o poder da leitura lhe pode conceder para a sua regeneração. Se alguém que leia este meu texto quiser mandar-me livros de início de aprendizagem para adultos, seria óptimo.

e. Finalmente e citei-lhe o que se passa com o amor, terá que aprender a surpreender a família e os outros, com uma nova maneira de estar e de comunicar e fazer com que o afastamento se torne presença. Os ausentes para estarem presentes têm que estar motivados e ele não pode perder tantos anos de lonjura…

f. Disse-me que era crente e que reza todos os dias e que gostaria de ter alguma assistência espiritual, coisa que tratei com o Sub-Director quando saí da entrevista.

g. Foi grande o meu contentamento quando percebi que o plano estava aceite com entusiasmo e novidade. Assim Deus o ajude.

Já vai longo o meu texto mas para terminar, estou seguro das razões que me levam a dedicar-me a este sector dos presos com entrega e interesse, ainda que reconheça que há tantas outras áreas aonde podemos dar o nosso contributo.

Sei por experiência de comentários que me fazem que me acusam do síndroma de Estocolmo (vejam no Google) e apesar de eu gostar muito da Suécia e da dita cidade, não concordo nada.

Quando se encontra a serenidade como retorno de se fazer aquilo de que se gosta, não há outro caminho senão o de prosseguir. Ainda que atento, com humildade e aberto a sugestões, mas sem desfalecimentos e desistências.

A sociedade civil não está informada, nem consciente e condena no primeiro minuto de conversa sobre a reinserção, um recluso para todo o sempre pelo crime que cometeu ( e temos visto tantas injustiças de condenações erróneas, ou injustas mas este tema levar-nos-ia a outros patamares) e esquece-se que vai ter que os receber, pois não há prisão perpétua e mesmo as maiores penas têm limites de tempo. Melhor seria que em conjunto pudéssemos todos ajudar quem num determinado momento prevaricou, mesmo gravemente, para poder voltar a retomar um lugar na comunidade, com duas pequenas/grandes ferramentas que se nos exigem: perdão e bondade. Sem isto vão de certeza, reincidir!

Gostaria que comentassem e que me ajudassem a levar a bom porto esta minha caminhada. Obrigado em nome de quem em mim confia e deseja que eu seja um porta-voz bem sucedido na minha missão.

MNA

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