Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto
É estranho como as as vidas das pessoas são tão complexas. Eu que sou uma contradição permanente, que ando a tentar encontrar-me (perdoem a imodéstia de dizer que procuro encontrar-me porque talvez não haja nada para encontrar, não sei), tenho poucas certezas relativamente a coisas que outros têm como certas, definitivas, acabadas. E dou comigo a perguntar-me quem sou, afinal, porque são tantas as contradições que existem em mim que acho que vou morrer obra inacabada, no sentido de não ter sido capaz de dizer: «Isto sou eu». Não deixa de ser confrangedor chegar aos sessenta e dois anos sem respostas definitivas para tanta coisa, com tantos pesos que se calam, com tantas coisas que ficaram por dizer...
Venho
de uma família de afectos contidos e, talvez por isso, procuramos o
afecto em coisas que, para os outros, são apenas quadros normais de vida
familiar. Meu Pai, o homem que mais admirei e que tanto amei, tinha uma
forma de sorrir que valia por vinte abraços, os tais abraços que eram
contidos, cerimoniosos quase, e que se distribuíam com uma enorme
parcimónia. A expressão de afecto vinha através do sorriso, das
conversas, dos serões na varanda da quinta a cantar, de inúmeras coisas
que poderiam parecer banais mas que eram a forma de expressar amor e
ternura numa família onde não havia grandes exibições dela.
Fomos habituados a que tudo neste mundo tem um preço, que cada acto tem consequências que há que sofrer ou gozar, que o importante é quem somos, e que teremos de viver o resto da vida com essa forma de ser que talhámos para nós, que as responsabilidades se assumem, custe o que custar, e os erros se pagam, com língua de palmo, se preciso for. Estranhamente, temos muito dessa ética protestante de não haver confissão que permita fazer borrón y cuenta nueva, de termos de carregar o peso de tudo, mesmo do que só nós sabemos, aquelas pequenas traições, aqueles pequenos deslizes que ninguém viu mas que sabemos que existem.
Penso que deve ser pesado morrer, nesta família, pelo menos para os que continuam a crer que assim é, que não há saída, e que tudo nos acompanha, sempre. Pela parte que me toca, continuo a carregar fardos antigos, promessas que se não realizaram, actos que ainda hoje me perseguem, pesares que calei e calo, e até essa pesada ferramenta de sobrevivência que me permite «matar» lembranças e recordações, tirar o sofrimento e a alegria associados ao nome de alguém, ao ponto de esse alguém já nada ser para mim, ter a mesma importância que aqueles com quem me cruzo na rua, com a diferença de que ainda vou olhando para aqueles com quem me cruzo.
Mas que lucro com isso? Pouco ou nada, para além de uma enorme solidão que não desaparece nunca, por mais acompanhado que esteja, um mundo estranho cinzento ou negro onde se refugia a maior parte dos meus pensamentos e que de vez em quando abre uma nesga da porta e deixa sair algumas coisas que, depois de peneiradas, observadas, expurgadas, acabam aqui porque, no fundo, é-me mais fácil escrever do que falar, sempre foi. Pouco ou nada, sim, para além de um momento em que alinhavo palavras que são minhas, por contraponto às que alinhavo para viver e que são de outros e noutra língua.
Uma coisa consigo: tentar ver se, em tudo o que me vem à cabeça, surge alguma explicação para esta minha maneira de ser, para este refúgio numa corte na aldeia que apenas existe na minha cabeça, se ordenando tudo isso um dia sairá alguma coisa que se leia, a sério, algo que seja mais do que estes textos fruto de insónias ou de desalentos, desabafos de quem se habituou a falar muito e dizer pouco, a não mostrar tudo o que está para além da girândola de foguetes que dispara, com todos os seus vermelhos, azuis, dourados e prateados, belas obras de pirotecnia de fazer inveja a qualquer mestre minhoto, mas que escondem mais do que revelam e deixam a ilusão de que talvez tenha mostrado mais do que mostrou.
Consigo também reconhecer que, no fundo, é um caminho difícil de percorrer e que pouco faço para deixar ver por onde vou, já que para onde vou nem sequer eu sei.
Pensei sempre que teria muito tempo para encontrar um caminho e acabei por seguir aquele que me foi imposto, com algumas rebeldias e revoltas que manso nunca fui, mas um caminho que me trouxe aqui, a esta idade, a este «exílio de mim» como disse o Padre António Vieira, porque continuo a ter a sensação de que algures havia outra terra prometida que nunca encontrei, nem vou encontrar, uma mítica Pasárgada onde seria o rei e não um mero amigo do rei.
Neste exílio de mim, caem-me em cima os dias passados, com todo o peso que acumularam neste tropel que outrora me pareceu lento e agora vejo que é cada vez mais célere. Ontem ainda sonhava, agora apenas reflicto. E quando tento encontrar um sentido no que ficou para trás, um sentido que me ajude a compreender o que tenho pela frente, descubro que não sei quem sou, que continuo à procura de mim, neste exílio.
Artur Lopes Cardoso
O título são os dois primeiros versos de um poema belíssimo de Mário de Sá-Carneiro chamado «Dispersão».
Fomos habituados a que tudo neste mundo tem um preço, que cada acto tem consequências que há que sofrer ou gozar, que o importante é quem somos, e que teremos de viver o resto da vida com essa forma de ser que talhámos para nós, que as responsabilidades se assumem, custe o que custar, e os erros se pagam, com língua de palmo, se preciso for. Estranhamente, temos muito dessa ética protestante de não haver confissão que permita fazer borrón y cuenta nueva, de termos de carregar o peso de tudo, mesmo do que só nós sabemos, aquelas pequenas traições, aqueles pequenos deslizes que ninguém viu mas que sabemos que existem.
Penso que deve ser pesado morrer, nesta família, pelo menos para os que continuam a crer que assim é, que não há saída, e que tudo nos acompanha, sempre. Pela parte que me toca, continuo a carregar fardos antigos, promessas que se não realizaram, actos que ainda hoje me perseguem, pesares que calei e calo, e até essa pesada ferramenta de sobrevivência que me permite «matar» lembranças e recordações, tirar o sofrimento e a alegria associados ao nome de alguém, ao ponto de esse alguém já nada ser para mim, ter a mesma importância que aqueles com quem me cruzo na rua, com a diferença de que ainda vou olhando para aqueles com quem me cruzo.
Mas que lucro com isso? Pouco ou nada, para além de uma enorme solidão que não desaparece nunca, por mais acompanhado que esteja, um mundo estranho cinzento ou negro onde se refugia a maior parte dos meus pensamentos e que de vez em quando abre uma nesga da porta e deixa sair algumas coisas que, depois de peneiradas, observadas, expurgadas, acabam aqui porque, no fundo, é-me mais fácil escrever do que falar, sempre foi. Pouco ou nada, sim, para além de um momento em que alinhavo palavras que são minhas, por contraponto às que alinhavo para viver e que são de outros e noutra língua.
Uma coisa consigo: tentar ver se, em tudo o que me vem à cabeça, surge alguma explicação para esta minha maneira de ser, para este refúgio numa corte na aldeia que apenas existe na minha cabeça, se ordenando tudo isso um dia sairá alguma coisa que se leia, a sério, algo que seja mais do que estes textos fruto de insónias ou de desalentos, desabafos de quem se habituou a falar muito e dizer pouco, a não mostrar tudo o que está para além da girândola de foguetes que dispara, com todos os seus vermelhos, azuis, dourados e prateados, belas obras de pirotecnia de fazer inveja a qualquer mestre minhoto, mas que escondem mais do que revelam e deixam a ilusão de que talvez tenha mostrado mais do que mostrou.
Consigo também reconhecer que, no fundo, é um caminho difícil de percorrer e que pouco faço para deixar ver por onde vou, já que para onde vou nem sequer eu sei.
Pensei sempre que teria muito tempo para encontrar um caminho e acabei por seguir aquele que me foi imposto, com algumas rebeldias e revoltas que manso nunca fui, mas um caminho que me trouxe aqui, a esta idade, a este «exílio de mim» como disse o Padre António Vieira, porque continuo a ter a sensação de que algures havia outra terra prometida que nunca encontrei, nem vou encontrar, uma mítica Pasárgada onde seria o rei e não um mero amigo do rei.
Neste exílio de mim, caem-me em cima os dias passados, com todo o peso que acumularam neste tropel que outrora me pareceu lento e agora vejo que é cada vez mais célere. Ontem ainda sonhava, agora apenas reflicto. E quando tento encontrar um sentido no que ficou para trás, um sentido que me ajude a compreender o que tenho pela frente, descubro que não sei quem sou, que continuo à procura de mim, neste exílio.
Artur Lopes Cardoso
O título são os dois primeiros versos de um poema belíssimo de Mário de Sá-Carneiro chamado «Dispersão».
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