quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Festa da rija - Carta de férias do meu primo Luis Bernardo


Resumo: Imaginem vocês que recebi uma carta de um primo que já morreu há vários anos e que me chegou à caixa do correio. No meu blogue está tudo explicado e as cartas anteriores trocadas foram abundantes. Creio ser o primeiro ser humano a ter verdadeiramente notícias reais, de além-túmulo. Deixei passar algum tempo para cair bem em mim, mas finalmente aparece alguém a explicar como tudo se passa. Aliás, nunca percebi porquê tantos mistérios!

Meu Caro Manuel,

Vou de férias por umas semanas e calculo que tu também. Fiz uma ronda de visitas pela tua Família, mas acabei por encontrá-los a todos numa festa que os teus Pais deram à parentela.

Vou-ta descrever, porque sei que gostarás de saber como a vida é prazenteira por aqui.

A casa dos teus Pais, da qual já te falei algumas vezes, estava esplendorosa. O convite era para um cocktail/high-tea (um misto de lanche “rico” e jantar ligeiro volante).

Uma tarde gloriosa, o relvado em frente do terraço largo e espaçoso, muito bem tratado e com canteiros de flores garridas, com árvores seculares dando sombras aqui e ali e uma miríade de mesas e cadeiras de jardim muito cómodas.

À entrada os teus Pais aguardavam os convidados, com grandes sorrisos e muita familiaridade tratando a todos pelos nomes…foram convocados de ambos os lados até aos quartos Avós e afins, incluindo primos e respectivos filhos. Uns cerca de 200!

Um pouco atrás do teu Pai, o Mordomo sugeria-lhe de vez em quando e discretamente o nome de um parente menos íntimo, o qual não se apercebendo de tal gesto, era recebido da mesma maneira afável que os demais.

Um "smoking" branco e um lenço de bolso em seda de bolas pretas e brancas “assorties” com o laço preto, pequeno toque de elegância - quem diria que aqui, o teu Pai se tornaria um pouco mais dandy – e a tua Mãe com um vestido leve, de cores variadas – ton sur ton - fazendo ressaltar um broche, daquele conjunto que herdaste, o das máscaras venezianas de esmalte envoltas em pequenos brilhantes, rodeados de brilhantes grandes e lindos. Sempre muito admirado pela invulgaridade do desenho e qualidade das pedras.

Criados de libré com bandejas de prata, servindo à entrada “flûtes” de champagne e pequenas tapas de caviar sveluga, foie-gras, e demais aperitivos de escolha requintada. Foi a velha Cacilda, cozinheira estrelada de nem sei quantos guias Michelin caseiros, que as fez e que as sabia tão bem preparar nos vossos jantares, daí.

Entrava-se para as salas amplas e que abrem para o terraço e jardim através de grandes portas de vidro, e todos se congregavam em pequenos grupos.

Uma mesa de mármore boleado, enorme, no meio do terraço, oferecia um buffet de esmeradas iguarias, e mais criados serviam todas as bebidas por entre as mesas espalhadas pelo jardim.

Os teus avoengos de Celorico da Beira e Fornos, muito encantados pela delicadeza do teu Pai de ter mandado servir “Licor Beirão”

Very thoughtful!

A dada altura o teu Pai, proferiu um belo discurso de boas-vindas nestes termos:

“Minha querida Família,

Gostamos de os receber em nossa casa, sobretudo tantos e de tantas gerações para trás.

Umas breves reflexões sobre o nosso estatuto presente: 

O homem do tempo ou o tempo do homem. Duas coisas bem distintas.

Uma inevitável, o tempo que tivémos na Terra.

Há quem lá queira comprar tempo, dias, às vezes horas que se podem tornar em anos: se alguém tiver umas horas a mais talvez se salve do enfarte e chegue a tempo ao hospital.

Há quem queira comprar tempo ainda mais refinado: anos de beleza, anos de saúde e a maioria, anos de felicidade. “Quem quer anos, quem quer ser feliz? “ Não me consta que houvesse em Lisboa de outros tempos pregoeiros de sonhos. Seria um sucesso, estariam ricos em pouco tempo.

O homem do tempo ou o tempo do homem.

Eu sempre preferi o tempo do homem, pude administra-lo, tanto quanto possível dentro de uma certa segurança, uma espécie de período de garantia.

Porém, quando foi o homem do tempo que se aproximou, foi o prenúncio do fim do meu tempo de homem.

Mas estamos aqui todos para nos encontrarmos e celebrarmos e por isso, como anfitriões, tentaremos estar hoje com cada um o tempo que nos for possível para revivermos só o bom passado familiar comum.

Bem-hajam!”

Os teus 4 Avós, fizeram-me muitas perguntas e mandam-te muitas recomendações. 

Têm saudades tuas e eu disse-lhes que tu também e que no teu blogue escreves frequentemente sobre eles e sobre as tuas amorosas recordações de todos esses tempos da tua infância. 

Decorreu a tarde e pela noitinha, acenderam-se tochas à volta da pelouse e um jantar leve foi servido. Do jardim dos teus Pais a vista sobre o mundo é um deslumbramento, e a tua Mãe aproximando-se de mim, travou-me o braço e disse-me em sotto voce:

- Querido Luís Bernardo, às vezes ao olhar para a minha frente, vislumbro luzes na Terra e imagino-me entre os meus de quem tanto gosto e de quem tantas saudades tenho. Diz ao Manel que zelo por ele e por todos!
E por aqui me fico, por hoje. Que te sirva de consolo saberes como és amado e que tens um lugar no coração de todos os que por aqui, comigo, estão. 

Teu muito afeiçoado primo

Luis Bernardo

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