segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Episódios picarescos da visita oficial à Serra Leôa - a corrupção (parte 4)

Fui recebido pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros a quem, cerimoniosamente, entreguei um “barrilinho” de falsa filigrana, dizendo-lhe que o navegador português Pedro de Sintra, quando descobriu a Serra Leôa (a que deu este nome, porque dos navios, ao longe, se vislumbrava uma cordilheira de montanhas que aparentavam ser uma leôa deitada) terá solicitado aos nativos que enchessem os barris de bordo com água pura e fresca! 

Expliquei-lhe que era um gesto de agradecimento tardio, que ele muito apreciou…não lhe disse é que não era ouro, mas vi os seus olhos gulosos e as suas mãos afagarem com vagareza o presente. 

Mostrei-lhe a carta do Presidente da República que entregaria na audiência com o Presidente Joseph Momoh. Qual não foi, porém, o meu espanto quando o ouvi dizer-me de mansinho que eu teria que pagar para a referida reunião presidencial! 

A quem, perguntei com terror, pois tudo o que eu menos queria era desembolsar uns milhares de dólares para um encontro que eu dispensaria de bom grado.

Respondeu-me que o pagamento seria a ele próprio, Ministro dos Negócios Estrangeiros! 

Balbuciei uma pergunta: - mas quanto? Logo se veria depois da audiência – respondeu-me.

Fui para o meu hotel amaldiçoando os deuses por ter aceitado este convite envenenado, mas decidi que na altura própria, com maneiras e diplomaticamente, encontraria uma solução para recusar tal aviltamento.

Tinha uma praia soberba em frente do meu quarto e resolvi aproveitar o magnífico dia e dar uns mergulhos e nadar. Perguntei se havia crocodilos ao que me responderam que logo ali não, mas que tivesse atenção, pois apesar de haver umas redes de protecção, poderiam estar eventualmente furadas em alguns pontos e abrir passagem. Limpinho, pensei eu cá para mim: com os antecedentes esmoleres de um Chefe do Protocolo do Estado até ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, não era de confiar na manutenção das mínimas precauções de uma vaga rede, posta, quem sabe há anos…

Aproximaram-se de mim uns três miúdos, sorridentes e tagarelas que meteram conversa comigo. Perguntaram-me se eu queria que me grelhassem umas lagostas que tinham acabado de pescar e eu disse logo que sim…estavam frescas e vivinhas ali à frente dos meus olhos.

Identificaram-se, encantados pelo meu assentimento, como mr. Mango, mr. Coconut e mr. Banana e eu dei umas belas gargalhadas, achando a maior piada. Perguntaram-me se lhes pagava as lagostas ao que eu assenti, mas à cautela e dado o que já tinha visto anteriormente, inquiri quanto seria e a resposta tranquilizou-me: o que eu quisesse!

Achei um programa excitante ver os preparativos dos três rapazes, hábeis e interessados em me proporcionarem um “bom serviço”, como e sobretudo, degustar tão belos e apetitosos crustáceos.

Fizeram uma pira de troncos pequenos, bastante combustíveis, e no cimo um espeto assente em dois paus enterrados na areia. As lagostas eram trespassadas pelo pau maior que eles tinham afiado com uma navalha e ficavam ali a grelhar em lume brando. Foram buscar umas raízes e umas batatas-doces que puseram também a assar. 

Eu teria que falar com o Paul Bocuse a contar-lhe que deveria mandar um representante do Guide Michelin a Freetown e à praia do Bintumani Hotel para classificarem, pelo menos, com uma estrela: tal iguaria, o serviço mieux que nature, e uma eficácia notável.

Fui ao quarto buscar um prato (de onde tirei as frutas tropicais que me tinham oferecido e que a seguir comeria como final do repasto) e os respectivos talheres. Como bebida, o mr. Coconut, fazendo jus ao seu nome trepou a um coqueiro e trouxe-me dois côcos. Fez com a navalha, um orifício no topo para eu poder beber a água de côco que é fresca e de que bem gosto.

Fui nadar e tomei uns belos banhos enquanto o meu almoço progredia.

Entretanto fui conversando com os meus "chefs cuisiniers" que me contaram que as suas famílias eram pobres e que eles as ajudavam com algum dinheiro que recebiam de turistas. Disseram isto com tanta naturalidade e simplicidade que nesse momento, disse para mim mesmo que a parada do meu pagamento aumentara significativamente, pesasse embora o resultado final poder não ser tão espectacular como eu sinceramente desejava, por eles e por mim.

Deliciei-me como um bom selvagem, comendo tudo, que estava uma especialidade e lambendo os dedos antes de os lavar no mar! Pura África com todo o seu esplendor. 

Ficámos à conversa até serem horas de regressarem a casa deles e de eu lhes ter pago muito generosamente em moeda local, o que implicou eles levarem um maço volumoso de notas. Disseram que ali estariam de novo no dia seguinte e trariam mais variedade de peixes e entregariam aos pais o dinheiro.

Fui para o bar do hotel e bebi forte e quando me fui deitar estava com os copos. O meu quarto era uma cabana engraçada que dava para a praia, e por isso quando abri a porta e acendi a luz decidido a deitar-me vestido, pois as forças faltavam-me para me despir, vi pelas paredes vários habitantes tropicais em grandes correrias desde lagartos grandes, um morcego que me olhava com ar de estúpido pendurado numa trave do tecto, para além de besouros do tipo AVIOCAR que, sem me causarem nenhum medo, não me agradava, contudo, a ideia de se passearem sobre o meu corpo durante a noite.

Acendi o ar condicionado pois estava um calor de rachar e puxei os lençóis para me deixar cair na cama, quando, felizmente, reparei que tinha companhia: uma mamba verde, das mais venenosas e cuja mordida mata sem remédio possível, esperava-me anichada e escondida!

Aí os vapores do álcool passaram como que por encanto e fiquei trémulo uns minutos sem saber o que pensar nem dizer. Reagi, e a correr chamei um criado a quem expliquei tudo o que se estava a passar.

Veio com a calma de quem está habituado a tais situações e pegando num tronco fininho, aproximou-se da mamba que entretanto já se tinha deslocado com a luz acesa do quarto, e enrolou-a à volta do pau e saiu para fora. Com uma pancada seca bateu com ela no chão e esmagou-lhe a cabeça.

Sorriu para mim com bonomia e disse-me: - Now everything is okay, Sir!

Agradeci-lhe e indaguei se já tinham tido acidentes mortais, e se eu podia dormir descansado agora, não fosse outra cobra vir de novo visitar-me. Respondeu-me que devia deixar sempre a porta e janelas fechadas, e mesmo que estivesse calor, tinha o ar condicionado. Quanto aos lagartos, morcego e AVIOCARS não havia problemas, pois não se mexiam no escuro. Com a proverbial sabedoria africana, não respondeu à minha pergunta sobre estatísticas mortais!

Voltei ao bar, bebi um bom long drink e regressando ao quarto deitei-me na cama exausto de tantas emoções.

No dia seguinte, os rapazes disseram-me que os respectivos pais muito me agradeciam e queriam até vir conhecer-me pois a gorjeta dada, equivalia a dois salários de cada um. Tenho ideia, que foram USD 10,00 para cada um…desígnios insondáveis do destino, poder ter comido lindamente por USD 30,00 e ter feito felizes três famílias.

(continua)

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