quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

O Miguel

O MIGUEL

Como alguns saberão fiz voluntariado na prisão de Alta Segurança de Monsanto, como professor de Português para estrangeiros pois os meus reclusos de topo eram todos de várias nacionalidades. Já vos contei bastante sobre esta minha experiência.

Um dos reclusos disse-me um dia: - Talvez quisesse conhecer o Miguel que é um rapaz que me visita e me tem ajudado com o Advogado.

Disse-lhe que sim e ele deu-me o número de telemóvel e eis-me a ligar.

O Miguel tem cerca de 29 anos, é gorducho, baixo, usa óculos grossos e é comunista. Mas dos ferrenhos. Não é, porém, do Partido Comunista Português, mas sim de um mais radical e aspira a fazer uma revolução em Portugal aonde vai tudo raso.

Encontramo-nos no Café Gelo do Rossio, de tradições revolucionárias, com o que eu me estou nas tintas pois tem uns óptimos bolos e croissants e uma data de estrangeiras que no verão estão o tempo todo a rir para nós, sem saberem o que lhes aconteceria se o Miguel conseguisse os seus intentos.

O Miguel tirou um curso superior no Instituto de Formação Bancária, tem um irmão e um pai e uma mãe separados que vivem no mesmo piso mas em apartamentos diferentes. A Mãe é uma alta funcionária pública de bastante valor e ocupando uma posição relevante, creio que socialista mas não nomeada por este Governo, e o pai está reformado e é manifestamente comunista.

O Miguel tem uns costados maternos de limpeza de sangue com um bom apelido mas usa só Miguel e o último que é péssimo, em termos de gente conhecida….ahahahahah

Quem me conhece saberá que eu adoro a diferença e somos muito bons amigos. Conversamos sobre tudo e eu vou-lhe perguntando como avança a revolução e ele vai dizendo que devagarinho pois não têm muitos fundos para o trabalho de propaganda nem para uma sede decente nem têm ainda muitos militantes. Eu digo paulatinamente, ainda bem e a conversa prossegue. Não te esqueças de me avisar com alguma antecedência...acrescento!

O Miguel é muito inteligente, uma daquelas pessoas só focadas nos temas revolucionários, ou seja sabe de cor “Das Kapital” e toda uma vasta literatura soviética, fala vários idiomas que ninguém fala desde o árabe ao farsi e enfim o inglês, não vê televisão, tem reuniões aos Sábados à tarde do Comité Central e vive num quarto para os lados do Martim Moniz.

Eu dou-lhe na touca dizendo que poderia viver melhor em casa da mãe ou até do pai, no seu quarto, com refeições regulares e boas, com total liberdade de movimentos, e umas vezes quando se pega com vizinhos e vizinhas de quarto aparenta ter vislumbres de algum desejo de conforto capitalista no seu lar materno, mas mal me deixa mergulha no seu mundo.

Gosto muito de ser amigo dele, temos discussões bravas mas civilizadas eu de um lado ele do outro, esgrimimos argumentos e o Miguel às vezes batido com um lógico bom-senso de que a revolução não triunfará, diz-me que em caso de sucesso eu serei preso num campo de reeducação na Guarda, mas num quarto individual e com vista e ele velará por mim. Rimo-nos muito e eu agradeço-lhe.

É divertido ter um amigo assim, diferente dos de toda a vida, porque tem bom fundo e ouve-me na parte profissional e naturalmente reconhece que o capitalismo tem um fascínio irresistível que até nele impacta, ou seja, se puder ter um emprego que eu lhe arranje aonde possa ganhar um bom ordenado não diz que não.

Encontramo-nos de 15 em 15 dias, agora no Inverno eu passo a busca-lo no carro ou ao Sábado ou Domingo de manhã e estamos no bate-papo umas duas a três horas.

E é tudo para já pois o futuro dirá se vou parar à Guarda num campo de reeducação ou ele vem passar umas férias ao Senhor Roubado na quinta dos meus trisavós que já não existe mas que lhe descrevo nas nossas conversas, com requinte e detalhe capitalista.

Espero continuar a contar as aventuras com o Miguel pois é sinal que a nossa amizade perdura e resiste.

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