quinta-feira, 21 de outubro de 2010
Lisboa de outros tempos - 14ª Carta do meu primo Luis Bernardo
Meu Caro Manuel,
Fui visitar os teus Avós maternos como me tinhas pedido. Estão excelentes e o teu Avô tinha recolhido uma série de fotografias que me deu e que te mando bem como organizado as ideias para te poder falar um pouco sobre a sua juventude, que obviamente não conheceste.
Transcrevo-te o que ele me disse dirigindo-se directamente a ti:
O meu Pai, como tu sabes, tirou o Curso Superior do Comércio, equivalente nessa altura a uma licenciatura em gestão financeira e foi Presidente da Junta de Crédito Público, tendo ocupado também outras altas funções no Estado, sempre dentro deste âmbito profissional. Foi colega do Alfredo da Silva com quem travou forte amizade.
Com cerca de 18 anos e depois de terminados os estudos secundários no Colégio de Campolide, o meu Pai falou com o Alfredo da Silva para me arranjar um emprego e fui estagiar para a Casa Bancária José Henriques Totta, aonde percorri todas os sectores da banca, criando uma sólida formação comercial e contabilística.
Quando casei com a tua Avó, ainda bem novo, fui desafiado pelo meu sogro e teu Bisavô para o ir ajudar na gestão da Editora Romano Torres, já na sua família há muitas gerações. Eu adorava livros, trazia conhecimentos actualizados e úteis, e por isso nem hesitei. Mais tarde com o meu irmão mais velho, desempenhei funções de Administrador não executivo em variadíssimas empresas aonde ele era Presidente e a nossa família, proprietária ou grande accionista.
Não sei se teria tido uma actividade profissional mais interessante se tivesse seguido a carreira bancária, mas não me arrependo da que escolhi pois não há melhor do que se trabalhar no que é nosso e fomos realmente muito bem sucedidos, com uma elevada qualidade de vida, como te lembrarás e de que todos beneficiaram e ainda bem.
Na minha vida de solteiro, e é dessa de que te vou falar porque me pediste, não posso deixar de te referir que a maioria dos rapazes com meios e de boa sociedade, tinham hábitos de grande pândega, sobretudo nocturna.
Era uma vida com dois tipos de comportamento :
o primeiro, o oficial e familiar com um enorme respeito pelos nossos Pais e Avós e pela severidade formal de que se revestiam as relações :
- a vida doméstica tinha horários estritos e presença obrigatória nas demoradas refeições em grandes casas servidas por criados e criadas e nas quais devíamos estar sempre bem vestidos e impecavelmente apresentados ;
- não podíamos, em princípio, eximir-nos ao cumprimento de todos os hábitos religiosos que o nosso estatuto social nos impunha ;
- as Mães e Avós eram muito devotas (dependendo o exagero de caso para caso, e no meu, apesar de muito rígida era terna e gostando muito dos filhos) e os Pais um pouco distantes, mas zelando pelo equilíbrio social e pelas tradições familiares, sem que pudéssemos causar escândalo.
o segundo, aliás transversal a Avós, Pais e Filhos (quando aplicável), era o de uma vida secreta, confidencial e zelosamente guardada cúmplicemente entre todos e só partilhada entre cada nível geracional.
Sabia-se que os « Cavalheiros » e disso se conversava detalhadamente com peripécias e gozo nos seus Clubes, faziam grandes vidas de lazer, com prazeres ocultos e práticas sensuais, mas normalmente sempre a horas que não prejudicassem, aos casados, o cumprimento dos seus deveres conjugais….Imagina que se jantava pelas seis horas da tarde ! Dava tempo de sobra para voltar depois da refeição ao escritório para fazer horas extraordinárias tardias, ou ao consultório a atender pacientes urgentes e por aí a fora…
As Senhoras casadas, sobretudo as mais desprezadas e por isso mais directamente infelizes ou as noivas desvalidas desconfiavam de toda essa vida brejeira e desregrada e como em tudo, não só acabavam por ser « apanhados » noivos, namorados, maridos e até « castas esposas » em flagrante delito, situações estas que redundavam sempre em separações, abandono das casas familiares ou rompimento de noivados.
O « sport » era uma ocupação dos « dandy » e da juventude bem educada desses tempos, e no meu caso e dos meus 2 irmãos, escolhemos a esgrima aonde fomos sempre muito bem conceituados : os teus Tios-Avós foram várias vezes campeões de Portugal e brilharam no estrangeiro, bem como vencendo inúmeros torneios que se disputavam entre os Clubes privados do país.
Nós atirávamos na Sala d’Armas do Professor Carlos Gonçalves, uma das melhores e mais bem frequentadas de Lisboa, sendo ele um insigne mestre com fama internacional. Foi com ele que teve lugar um dos últimos duelos à espada em Portugal.
Tínhamos como Amigos e parceiros de esgrima o Conde de Lavradio, o Henrique MacBride, e os membros de uma equipe que mais tarde ganhou uma medalha de bronze nas Olimpíadas de Amsterdão em 1928 formada pelo Mário de Noronha, filho do escritor Eduardo de Noronha, Paulo d’Eça Leal, Jorge de Paiva, João Sassetti, Henrique da Silveira e dávamo-nos também com o Ruy Mayer, o António Mascarenhas e Menezes, o António Pinto Leite e tantos outros que tornavam esta prática num verdadeiro prazer entre amigos.
Para te descrever o que eram as nossas noitadas preciso de recuar um pouco no tempo e contar-te o que era a noite de Lisboa desde o fim da Monarquia até à República e aos meus anos de viçosa mocidade.
Com efeito, na minha juventude era nítida a convivência que alguns aristocratas desenvolviam tanto com as « cocotes finas » como com as prostitutas do fado baixo. Nas esperas de touros, ao som do fadinho chorado, lá víamos as « cocotes chiques » ao lado da Severa, da Júlia Gorda ou da Joaquina dos Cordões.
As esperas de touros constituíam também motivo de franca confraternização entre os boémios das várias castas, desde o faia do Bairro Alto até ao mais requintado aristocrata. A integração era quase perfeita e as distinções culturais apareciam socialmente minimizadas.
Ou seja, a Lisboa boémia era, do ponto de vista cultural, distinta da outra Lisboa : a gíria fadista do Bairro Alto, Alfama e Mouraria era ilustrativa da faceta rija e brigona de tais bairros. As próprias prostitutas adoptavam frequentemente nomes de guerra no sentido de uma certa auto personalização.
Mas, se, ao nível cultural, as fronteiras que separavam a Lisboa boémia da Lisboa de «ar mais sério» não eram muito permeáveis, por inevitáveis exigências de mercado, surgiu uma maior concorrência entre as prostitutas, cuja consciência de profissionalização cresceu progressivamente. Acresce que, ao mesmo tempo que o fado se aristocratiza, o « chulo » era, para além de fadista, uma personagem dupla — «marido complacente» e «guarda-costas para ocasiões críticas» —, e passa a ganhar uma tôsca, mas frutuosa, consciência empresarial, metendo por dia ao bolso uma razoável quantia.
Quanto às zonas de prostituição, os aventais de madeira (bordéis da clássica meia porta) mais antigos passaram a dar lugar aos bares, ao mesmo tempo que, com o aumento do tráfego e das vias de comunicação, as nómadas tornam-se as passageiras certas e pontuais dos camionistas.
O fado pode ser considerado como filho da prostituição e das baiucas. Daí que no bordel estivesse sempre presente uma guitarra. O fadinho era a canção, a dança especial e predilecta de meretrizes, vadios, estróinas e boémios e, enquanto o fado tanto podia significar «prostituição na mulher» como «vadiagem no homem», fadista era a mulher que se entregava à prostituição ou o homem brigão, vadio, desordeiro.
O fadista, como a Lisboa do meu tempo o entendia — galanteador arrogante e valdevino — era temível até pelo nome: o Facada, o Trinca, o Naifa.
Aqui e além surgiam tentativas de regeneração da prosápia do fadista e avançavam-se com vagos «sentimentos de honra». Um conhecido fadista e poeta boémio afirmava:
Os fadistas que se prezam tocam guitarra, mas não usam navalha! Cantam o fado, mas não são rufiões.
O certo é que a vivência boémia não dispensava as corridas...apitos...balbúrdia... galegos a correr com macas para o Hospital de S. José...cirurgiões a coserem as barrigas furadas pelas simpáticas navalhas de ponta e mola.
Muitos fados da época retratavam fielmente o quotidiano habitual do fadista pimpão:
Na tasca da putaria
Houve ontem grande bulha,
Veio de lá a patrulha,
Pra o Carmo levar me queria.
Um soldado olha para mim,
E me diz: «Marche prà frente,
Barulho não se consente,
Aqui não se quer chinfrim.»
Mas não me faz espantar,
Que tinha vinho nas tripas;
Preguei-lhe quatro chulipas
E depois toca a safar.
Na verdade, rara era a noite em que não ocorriam sérios confrontos entre as forças da ordem e a fadistagem. Ciúmes e disputas de mulher estariam, talvez, na origem destas intrigas. Com efeito, os famigerados guardas também tinham os seus arranjinhos e as suas protegidas. O certo é que as forças da ordem detestavam os fadistas, abominando as suas melenas e a boca de sino das calças.
Na esquadra do Atalaia, o chefe Silva parece que exagerava: quando algum desgraçado que assim trajava lhe ia parar às mãos, com uma tesoura, cortava-lhes as mechas de cabelo e, quanto às calças, não tinham a menor sorte: a desalmada tesoura ia-se às bocas de sino como faca à manteiga. As vinganças eram depois implacáveis. Neste caso concreto, quando o chefe Silva se reformou, a fadistagem fez-lhe uma espera, de noite, e foi tal a carga de pancada que lhe aplicaram que o desventurado, dela morreu um mês depois!
Aristocratas ou de condição mediana, oficiais do Exército e até burgueses pacatórios quiseram abraçar o fado. O luxo era fazer uma digressão « guerreira » à Mouraria, Bairro Alto e Alfama.
Fidalgos roçando por costureiras; um ministro a par e passo de um gatuno; um poeta ao lado de um barbeiro; uma virgem passando ao lado de uma prostituta.
As tabernas, ponto de encontro de todos estes boémios, tinham, naturalmente, uma frequência socialmente diversificada. Todos lá iam depenar a perna. Desde moços de fretes, até à mais fina-flor da aristocracia. Esta, ou amava em São Carlos ou no bordel. Os mais ousados preferiam o bordel ou a taberna, independentemente das indignações e de certos preconceitos de família.
As dolências de uma guitarra à boca de uma taberna tinham, pois, uma plateia variada. Até altas horas havia descantes, fado batido, gritaria infernal.
Taberna tranquila, sem murros, sem gritos, sem facadas, era «fraca taberna». A taberna pedia desordem e o povo pede taberna. E com o povo andava a aristocracia boémia.
Nas esperas de touros, certos círculos aristocráticos mantinham uma convivência aberta com as prostitutas do fado baixo. Estas, por sua vez, mantinham uma relativa convivência com as « cocotes finas ».
A diferença entre elas reflectia-se apenas, na utilização ou não do «leito de ferro» ou da «cama de embutidos».
Os «doidos marialvas», integrados em grupos de desordeiros e beberrões, fadistas e vagabundos, por todas as locandas, desde o Arco do Cego até Loures, eram acompanhados pelas amantes e outras mulheres de vida fácil. Alojavam-se, nomeadamente, nas locandas vizinhas do Campo Pequeno até altas horas da madrugada, à espera da largada de touros.
Os próprios fidalgos trajavam à fadista. A integração era perfeita e as distinções sociais minimizadas. Aqui, um fadista de calça à boca-de-sino, cinta, jaqueta e chapéu desabado, tocando fados ou corridinho; ali, um filho pródigo que andava dissipando a herança paterna; acolá, um fidalgo pândego, amador da paródia das esperas, trajando igual ao fadista.
Poder-se-á, enfim, especular se as «mulheres do fado» não tinham amantes predilectos. Parece que sim, mas todos eles, fossem marinheiros, ou marialvas, tinham uma particularidade comum: eram amantes do fado. Dentro dos limites do possível, elas sabiam respeitá-los, não os atraiçoando com outro qualquer. Separavam «o seu comércio dos seus amores». Não sustentavam relações amorosas duplas, até porque eram perigosas.
Ao mesmo tempo que o fado se aristocratiza, a vida boémia da capital transforma-se. Para além do fadista, figuras típicas da boémia, como a «proxeneta», o «chulo» e a prostituta, ganham novos hábitos, desenvolvem novas práticas.
Mas voltemos ao meu tempo, aonde surgem as « engatadeiras » a tempo integral, passando a actuar como verdadeiros agentes de tráfico conhecedores dos mais ardilosos segredos de marketing. Nas chegadas dos comboios à capital ou na província, para melhor poderem actuar, até se apresentavam, sofisticadamente, trajadas de irmãs da caridade ou com uniformes de enfermeira. Às pequenas que andavam na venda de peixe e de fruta eram feitas propostas com mobilizadores atractivos pecuniários. E até a qualidade do produto não era descurada: eram quase sempre escolhidas as que tinham seios redondos, nádegas amplas, boas cores, alvos dentes e tutti quanti era essencial para agradar ao mais exigente.
Quanto aos circuitos de divulgação do produto, passavam a ser também dos mais sofisticados: nas ruas da Baixa enviavam-se «bilhetes de convite» oferecendo a «prática de bons serviços», como quem divulgava um memorando ou reclame dum estabelecimento que vulgarmente anunciava um produto.
Fazíamos ceias no Tavares Rico, íamos ao teatro e trazíamos as coristas.
Não me arrependo desta vida de estroina, bem vivida, divertida e criando grandes laços de solidariedade entre os companheiros e amigos de fortuna. Guardámos sempre grande cumplicidade entre todos, e mesmo já depois de casados e cada um com as suas famílias, quando nos encontrávamos, os abraços eram apertados, os sorrisos largos e bem dispostos e vinham sempre à memória e nas nossas conversas esses belos tempos passados em conjunto.
Aqui tens o que, sendo talvez um pouco libertino, não prejudicou no futuro para a maioria de nós o respeito pela honra, as boas maneiras e a sã e alegre convivência, malgrado porém para alguns ter acarretado graves consequências de doenças da época, a ruína e precariedade de fundos bem como ter contribuído para a existência de famílias complicadas e infelizes.
Nós, nesses momentos sentíamo-nos felizes, descomplexados e gozando os prazeres da boa vida.
A terminar, devo dizer-te que éramos todos uns janotas e cuidávamos das nossas aparências: tudo era acessível a pessoas da nossa condição – barbeiros, manicuras…quantas não se tornaram verdadeiras « companheiras », alfaiates com tecidos e cortes da moda, sapatos mandados vir de Inglaterra, chapéus de feltro elegantes, camisas de popelina fina e gravatas de seda, lenços de cores variegadas : tudo contribuía para uma aparente, mas real felicidade.
Meu querido Manuel, muito engraçado este teu Avô e com uma enorme boa disposição.
Um abraço do teu primo muito afeiçoado
Luis Bernardo
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