quinta-feira, 7 de outubro de 2010
11ª Carta do meu primo Luis Bernardo - As chaves do paraíso
Meu Caro Manuel,
Senti-te agitado na tua última correspondência. Queixavas-te do país, indirectamente da Europa e em última análise da crise global. Que desassossego! Isto por aqui tão calmo e sereno, sem essa noção de incerteza, de abandono e de materialidade.
Lembro-me de que no princípio da nossa correspondência, te lamentavas de nunca ninguém ter vindo dizer o que se seguia à morte. Interpretavas o sentir, quase que diria de toda a Humanidade viva, e sem hesitações perguntaste-me o porquê.
O que é mais relevante na tua questão, é sobretudo a sensação de revolta, por tal não acontecer.
Se olharmos para o que é tradicional ensinar-se, transversalmente aliás a quase todas as religiões, esta ausência de verdade, de transparência e de comunicação de um Deus para com os Homens, prejudica enormemente o caminho e a permanência na fé, intriga sobre que Deus tão distante é este que parece ter algo a esconder: se a surpresa é boa, porque não revelá-la motivando e incentivando à prática do que tais religiões consideram como o bem, ou havendo os costumeiros purgatórios, infernos e limbos…bom seria que fossem todos avisados para poderem escolher o “destino” antecipadamente, em função dos pecados praticados ou a evitar!
Como não será lógico que tantos se sintam confusos, sós e sem certezas, “adorando” um Deus acima das nuvens?
Este temor e pânico da punição eterna, prejudica a vivência do amor generoso, a partilha dos bens materiais, espirituais e do pensamento bem como o desejo de uma vida simples sem demasiadas ambições e em que a paz é o desiderato supremo. Em certa medida e com outros contornos é isto que se vive aqui.
Fui visitar o teu Avô materno, como me pediste, e encontrei-o tão entretido em estar com tantos daqueles com quem aí na terra se deu e de quem foi amigo que quando lhe propus que me narrasse a sua vida de jovem estroina de Lisboa dos anos 30 para que ta pudesse contar, pediu-me tempo pois o facto de ter que organizar as ideias sobre um mundo que já não lhe diz nada, pouco lhe interessa.
Aliás acrescentou que só o faz por ti e já que assim lhe pedes considera ser mais fácil ir ao encontro dos que com ele conviveram nesses tempos para assim melhor os reviver. Tem pois um pouco de paciência!
Histórias de boémia terrena parecem-te poder ser blasfémia por virem de alguém que já morreu? Quantas vezes te terei que dizer que a vida na terra é passado e acaba com a morte e é o percurso de cada um sem consequências de labaredas ou de lugares à direita ou à esquerda…conforme a filiação política! O que terão os centristas previsto como o seu lugar no paraíso se ao centro, segundo a doutrina, está sempre Deus?
Por isso recomendo-te que estejas tranquilo, que gozes a vida com bom senso, inteligência e liberdade (naturalmente que dentro destes conceitos está implícito o equilíbrio próprio da tua consciência e o que deves praticar no seio da comunidade humana que te rodeia).
O sofrimento terreno é arte dos homens, criam razões sem nexo para se mortificarem a troco de benesses futuras inexistentes.
A dor é dor e ninguém gosta de a sentir, mas faz parte das debilidades e vicissitudes do corpo, e por isso não deve ser encapotada nem valorizada. Deve sim, ser evitada ou minorada por todos os meios possíveis.
O prazer é bom e deve ser encorajado. O gozo dos sentidos é um dom do corpo e para isso existem. Quem abuse e se exceda, ainda que este juízo só a cada um diga respeito, responsabilizar-se-à pelos danos que possa causar à comunidade, mas nunca poderá ser motivo de “condenação eterna”!
Seria negar a justeza do criador ao criar o seu modelo. Se o dotou com tudo quanto faz parte intrínseca do seu ser, como pode negar que utilize o que possui ab initio?
Depois, não achas hipócrita não chamar as coisas pelos nomes? Quem morreu afogado, independentemente das razões, não pôde chegar a bom porto e é náufrago…quem se matou com uma overdose, por razões próprias que só a si disseram respeito, porque não lhe chamar um consumidor de drogas?
Esta falta de naturalidade em relação ao juízo das condutas humanas por medo de represálias para além da morte, é perfeitamente disparatada.
Hoje fico-me por aqui, mas quero voltar a abordar-te o tema do caminho para uma vida terrena feliz, desempoeirada e completa, pois a morte fecha um ciclo que não tem continuidade: cinza, pó e nada!
Lembras-te que os teus Avós maternos, apesar de gostarem muito um do outro, discutiam um bom bocado pois o teu Avô era autoritário, exigente e perfeccionista e a tua Avó muito mais dócil, resignada e tentando defender o equilíbrio do casal?
Pois ficas a saber que vivem como “Deus e os anjos”, se me permites este tão terreno aforismo que aqui não se aplica, mas que te será elucidativo.
Portugal daqui a uns anos não será igual a hoje ou melhor ou pior: tu ou outros que te sobrevivam não alteram o “curso das estrelas”, e se conseguires perceber como a aprovação ou não do orçamento é uma minudência comparada com o Universo, bem podes dormir sossegado e deixar a mente ocupar-se com pensamentos mais elevados.
Teu primo muito afeiçoado
Luis Bernardo
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