sábado, 15 de outubro de 2016

O enigma do Bom Samaritano por Frederico Lourenço


O enigma do Bom Samaritano

O Bom Samaritano é uma personagem bíblica que toda a gente conhece – mesmo pessoas que nunca tenham lido o Novo Testamento sabem contar a história. Aqueles de nós que somos, de facto, leitores da Bíblia sabemos precisar melhor o contexto: sabemos que é um episódio (ou «perícope») que ocorre somente no Evangelho de Lucas, esse príncipe da originalidade entre os evangelistas «sinópticos» (Mateus, Marcos e Lucas), já que em Lucas encontramos tanta coisa bonita que está ausente dos outros Evangelhos.

No entanto, o episódio do Bom Samaritano não pode ser lido isoladamente de Mateus e de Marcos, porque precisamos deles para ajudar a compor o retrato do Samaritano: precisamos dos outros evangelistas para percebermos quem está por trás da máscara do Bom Samaritano.

Esta questão de «quem é quem?» no episódio do Bom Samaritano tem causado perplexidade a muitos intérpretes do Evangelho de Lucas. Quem conta a história (Lucas 10:30-37) é Jesus. Este facto, porém, não inibiu os exegetas de verem na história uma personagem que é o próprio Jesus, como se Jesus fosse um narrador intradiegético, personagem da sua própria narração. Em 1959, o teólogo alemão Hans Binder publicou um artigo fascinante na revista «Theologische Zeitschrift» (nº 15, pp. 176-194) em que argumentou a favor da identificação da vítima do assalto como Jesus. Segundo Binder, a história contada por Jesus sobre os maus-tratos sofridos por «certo homem» diz respeito e ele mesmo: Jesus.

Pessoalmente, apesar de toda a admiração por Binder e pelo seu belo artigo, não concordo com esta interpretação. Jesus está presente na história do Bom Samaritano, sim: e é muito claro, se olharmos para as subtilezas do texto grego, perceber quem é. 

A chave está no versículo 33, no verbo «compadeceu-se», que descreve a reacção do Samaritano ao ver o homem espancado. Trata-se do verbo grego «splankhnízomai», relacionado com «splánkhna», que são as «vísceras». Descreve um sentimento de «compaixão visceral». Das 11 vezes que este verbo surge nos Evangelhos, é sempre usado com referência a Jesus ou a personagens que são apresentadas como «alter ego» de Jesus. É o caso do rei que perdoa as dívidas em Mateus (18:27); é o caso do pai do filho pródigo, que se condói visceralmente ao ver o estado em que o filho chega a casa (Lucas 15:20).

E é o caso do Bom Samaritano: o uso do verbo «splankhnízomai» não deixa lugar para dúvidas. O Bom Samaritano só pode ser Jesus.
 
Frederico Lourenço

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