sábado, 15 de outubro de 2016

ALFRED NOBEL GALARDOADO COM O PRÉMIO DYLAN


1. O Prémio Nobel não é o Juízo Final, e nenhum júri, por mais qualificados que sejam os seus membros, tem o dom da infalibilidade. Para cada prémio dado há, naturalmente, uma quantidade infinita de outros escritores tão ou mais merecedores da mesma distinção. Mas há que reconhecer que, no seu conjunto, os sucessivos júris do Nobel da Literatura têm feito um excelente trabalho e que no seu conjunto a lista dos premiados, ao longo dos anos, é de uma enorme dignidade e contém muitos dos nomes de referência da Literatura mundial do último século. Podemos chorar as ausências mas não me parecer que se possa construir qualquer teoria da conspiração para as explicar a todas. O Prémio é o que é, faz o que faz, escolhe quem escolhe, e a meu ver, de um modo geral, não tem escolhido mal.

2. Se o Senhor Robert Allen Zimmermann tivesse publicado desde os anos 60 os seus versos numa série de livrinhos respeitáveis, em pequenas editoras independentes de vão de escada, estaríamos hoje sem qualquer dúvida a falar de um dos maiores poetas de língua inglesa desse período, na linha de um Allen Ginsberg, por exemplo, e neste momento sentir-nos-íamos felicíssimos com mais uma narrativa reconfortante de como o Nobel fez finalmente justiça a uma vítima do sistema. Desde o Romantismo que nos habituámos a gostar muito desta imagem do génio incompreendido a desfalecer numa mansarda, apesar da realidade aparentemente irritante de que houve sempre muitos génios que foram compreendidos e prósperos e muitos inquilinos de mansardas com pretensões artísticas e literárias que não passavam de medíocres anónimos.

3. Sucede que o dito Senhor Zimmerman preferiu, desde os seus anos de juventude como estudante na Universidade de Minnesota, cantar os seus versos, sob o nome de Bob Dylan, e desde então há mais de meio século que as suas canções continuam a marcar o nosso imaginário e a nossa consciência, geração após geração, influenciando decisivamente escritores, músicos, artistas plásticos e cineastas como poucos criadores do nosso tempo alguma vez o conseguiram fazer. Se no início a sua obra se inseriu assumidamente ao fenómeno específico da luta pelos Direitos Civis e contra a guerra no Vietname, nas décadas de 60 e 70, sobreviveu largamente a este contexto político concreto e afirmou-se sempre como uma voz única, inconfundível, indispensável, a falar-nos a cada momento dos nossos medos e das nossas epifanias, das nossas memórias e das nossas utopias, das nossas raízes e das nossas escolhas para o futuro.

4. É por isso de um grande, grande poeta que estamos a tratar. Ao contrário do que tem sido a leitura apressada de alguma Comunicação Social, o Nobel concedido a Bob Dylan não representa de modo algum uma suposta “descida” do Prémio ao patamar da Cultura de massas – o que em si mesmo não teria, a meu ver, qualquer inconveniente de princípio – mas a consagração de um enorme criador literário, de pleno direito, cuja escolha honra quem o escolheu. De algum modo, Alfred Nobel recebeu hoje o Prémio Dylan.

Ruy Vieira Nery

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