domingo, 17 de julho de 2011

O homem das duas cabeças



Quando Ricardo nasceu, naturalmente que os seus pais bem como toda a família ficaram chocados e horrorizados e foi com perplexidade que aceitaram as explicações dos médicos que lhes comunicaram que não havia nada a fazer para separar as duas cabeças mas que tudo indicava que poderia vir a ter uma vida normal e até escolher que cabeça usar conforme as circunstâncias. Iria assim ter uma dupla personalidade, com o mesmo corpo.

Foi crescendo e ia tendo os problemas que se calcula pela inusitada situação em que se encontrava mas a pouco e pouco foi deixando de ser falado e passou a gozar de uma certa tranquilidade. O pequeno mundo da sua aldeia aceitou-o e todas as vezes que algum estranho se deslocava propositadamente para o encontrar, era mal recebido.

Ricardo tinha vindo a constatar como era cómodo ter duas cabeças e descobrira o prazer da sua dupla vida.

Manifestamente criara com uma delas um carácter mais propenso à ponderação, ao estudo e ao amor à natureza. Tinha prazer em pastorear os rebanhos do seu pai, gostava de uma vida saudável e simples e ficava horas sozinho sentado no campo por debaixo de um chaparro à conversa com a outra cabeça.

Estouvada, sensual, muito mais aberta e com curiosidade em explorar o mundo para fora da aldeia, a outra cabeça lia os jornais no café, sabia de futebol, da guerra e da paz, de sexo, e sonhava sair dali.

Eram estas as disputas entre as duas cabeças que acabavam sempre com a cedência da mais progressista em esperar pelo tempo certo para dissuadir a outra em partir, nem que fosse para uma experiência temporária.

Um dia apareceu na aldeia a Júlia que tinha voltado da França com os pais, emigrantes endinheirados, que com a crise global tinham preferido com os aforros obtidos em dezenas de anos fora, regressar às origens.

Júlia era uma rapariga moderna, experimentara a vida de um país como a França, namorara, vestia-se diferentemente das outras raparigas da aldeia, pintava-se, era garrida e provocadora. Tinha alguns estudos e passava o tempo a fumar com um ar dengoso e a ouvir músicas que Ricardo nunca ouvira num ipod que lhe pendia da cintura fina com umas ancas bem feitas e um peito de rola rechonchudo e formosíssimo.

A princípio ficara estacada e sem palavras quando topou a primeira vez com Ricardo e olhava com surpresa para as duas cabeças, mas quando ouviu uma voz simpática e agradável dizer-lhe os bons dias e apresentar-se, respondeu a todas as perguntas e reparou que para além das duas cabeças, era um rapaz muito atraente com uma bela figura e com um corpo muito bem feito.

Em casa, Júlia comentou ao jantar com os pais o encontro com Ricardo e foi-lhe dito que era um caso estranho da ciência e que todos na aldeia o respeitavam mas que não sabiam lidar muito bem com a situação pois ninguém jamais tivera uma experiência semelhante, parece mesmo que a nível nacional e internacional. Aconselharam-na a ser prudente e a não criar grandes intimidades, pois não levaria a nenhum destino.

A cabeça campestre de Ricardo ouvia a sua outra cabeça falar com entusiasmo de Júlia, como a achara excitante e moderna com hábitos diversos dos da aldeia: achava mesmo que valia a pena adiar a partida para a cidade e explorar este novo conhecimento.

Júlia veio em passeio para os lados aonde estava Ricardo e a cabeça mais rural encetou conversa com ela e foi-lhe mostrando as ovelhas e os pastos e a riqueza dos campos e perguntando-lhe se na terra aonde ela viveu tinha tido a ocasião de estar assim com simplicidade em contacto com a natureza, e ela encantada com a beleza do dia e da paisagem foi conversando e durou até ao entardecer. Ricardo perguntou-lhe se a podia acompanhar até à entrada da aldeia e ela assentiu com agrado e despediram-se, combinando no dia seguinte repetirem o passeio para outros lados que ele lhe descreveu como de grande bucolismo.

À noite a conversa entre as duas cabeças foi menos pacífica pois a cabeça citadina não gostou nada dos avanços da outra e exigiu que no dia seguinte fosse ele a ir buscá-la a casa e a experimentar o ipod, ouvindo as músicas e a passear pelas ruas da aldeia e até convidá-la a ir tomar um café à pastelaria Central.

Ricardo começara, estranhamente, a sentir nas suas duas cabeças e ao mesmo tempo um sentimento estranho em relação a Júlia: uma sensação interior de qualquer coisa mais do que interesse, mas de formas diferentes consoante fosse uma cabeça ou outra.

O corpo respondia univocamente com sensualidade e com desejo em explorar o contacto com Júlia mas o que encarava como entusiasmo, talvez até como um princípio de paixão manifestava-se de forma diferente.

Júlia não era insensível ao namoro que Ricardo lhe fazia cada dia e ficava um pouco perturbada quando se apercebia que nem sempre havia uma continuidade de personalidade como se – a ideia passara-lhe pela mente – cada cabeça pensasse e agisse diferentemente, ainda que no mesmo corpo.

Tinham combinado ir no dia seguinte de manhãzinha lá para os lados do rio aonde havia um antigo moinho abandonado e Ricardo prometera-lhe que lhe explicaria como se moía o trigo ou o centeio para fazer a farinha para o pão.

O tempo acordou ameno e foi passando e Júlia ia estranhando o atraso de Ricardo e já o sol ia alto e nada de notícias. Resolveu sair de casa e foi perguntando aqui e ali se o tinham visto e recebia respostas negativas.

Inquiriu qual era o caminho para o velho moinho e para lá se dirigiu um pouco assustada por ir sozinha e ao chegar não encontrando ninguém cá fora, sentou-se desanimada. Não sabia de facto o que fazer!

Subitamente, junto aos pés começou a notar que escorria um fio de sangue fresco que vinha de dentro do moinho e com o coração apertado aproximou-se da entrada.

O acesso era esconso, mas uma vez lá dentro habituou-se à luz da sala do moleiro e foi com horror que deparou com um cenário dantesco, dando um grito agudo e sentindo-se a perder os sentidos.

A pedra redonda do moinho em vez de trigo ou de centeio, tinha, desta vez, pisado um corpo que ela de imediato reconheceu como sendo o de Ricardo, escorrendo o sangue das suas duas cabeças que jaziam, esmagadas, debaixo da mó.

MNA

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