Rosé
Quando eu era jovem, a ideia de beber vinho rosé era o
cúmulo da possidoneira. Hoje já não é. Aliás hoje já ninguém dá
importância (espero!) a esse conceito ridículo do possidónio, que era um
papão insuportável nos anos a seguir ao 25 de Abril, um fantasma do
Antigo Regime ou, melhor, uma galinha decapitada que, grotescamente,
ainda se movia – apesar de morta. Paz à sua alma.
Mas, naquele
tempo, era algo (palavra possidónia) que nos acabrunhava (idem).
Sobretudo para pessoas como os meus pais (recém-chegados, graças à
elegância e inteligência próprias, ao mundo do bom gosto), era vital
interiorizar todas as regras de comportamento dos não-possidónios,
regras que eles transmitiram a mim e à minha irmã, criando assim uma
esquizofrenia que caracterizou de forma caricata os meus primeiros vinte
anos de vida – até ir para a universidade onde, rodeado de
“possidónios”, comecei a perceber que tanto o vocabulário como a
pronúncia do português sempre têm alguma variedade, graças a Deus.
Por outro lado, também percebi que, fora do círculo de intelectuais
finos e de aristocratas literários que eram os amigos dos meus pais,
havia muitas outras pessoas que valia a pena conhecer, independentemente
de tratarem os filhos por tu, darem dois beijinhos e outras
“possidoneiras” do género.
Sobretudo fui percebendo ao longo da
minha vida que as regras herdadas do bom gosto (na fala, na interacção
social, na decoração, na comida, nos vinhos, etc.) não eram dogmas
imbuídos de infalibilidade papal, mas apenas opiniões subjectivas que
tinham adquirido o estatuto de dogmas por isso ser um meio útil para
manter à distância os não-iniciados.
No entanto, a antiga
axiologia do possidónio era o mais perfeito exemplo dos perigos de se
tomar a nuvem por Juno. É que, vistas de fora, de forma clínica e fria,
as regras do comportamento “bem” não eram mais que um código combinado
por um grupo. Sem qualquer valor intrínseco. Por isso seria disparate
saltar para a conclusão de que quem dá só um beijinho e trata os filhos
por você só por isso está habilitado para se pronunciar com
infalibilidade sobre questões de gosto. Dar um beijinho é
intrinsecamente mais “bonito” do que dar dois? A palavra “lábio” é
intrinsecamente mais “feia” do que “beiço”? São códigos combinados,
apenas. Sem qualquer outro valor.
Seja como for, o rosé era, de
facto, a morte social. Aliás, naquele tempo mais ou menos tudo o que
participava da cor “pink” era automaticamente possidónio. O que primeiro
me alertou para o relativismo deste tipo de dogma foi conhecer amigas e
amigos ingleses que, no seu país, pertenciam à chamada classe social
“alta”. As regras, aí, eram totalmente diferentes; muitas vezes opostas.
Em Inglaterra, o vinho rosé era chique: isso está, de resto, nos livros
de Sacheverell Sitwell (neto do Duque de Beaufort, portanto da mais
alta aristocracia da Europa). Um prato em porcelana de Sèvres do reinado
de Luís XV (que vale o seu próprio peso em ouro) era considerado
possidónio em Portugal; em Inglaterra, era o máximo do bom gosto. Sendo o
prato o mesmo, como é que dois grupos aristocráticos, ambos
auto-proclamados donos do bom gosto, podiam reagir de forma tão oposta? O
terror português das cores (“tudo pintado de branco!”) não era
partilhado pelos iluminados do bom gosto em Inglaterra, que se atreviam a
pintar as suas salas e casas-de-jantar de amarelo, de lilás, de
cor-de-rosa e sabe Deus que mais. Foi uma lição filosófica, pois eu
nunca tinha sido obrigado, de modo tão cortante, a perceber a pura
arbitrariedade das regras do gosto – área onde não há verdades
absolutas: apenas opiniões subjectivas. Gostas de rosé – qual é o mal?
Adoras porcelana de Sèvres – e depois?
Na verdade, não gosto
especialmente de rosé; isto é, não desgosto, mas não me apaixona. Mas
adiro com paixão à estética do reinado de Luís XV (como à do românico,
do gótico, do Pártenon, de Matisse, n’importe): na arte há tantos
paradigmas possíveis de beleza; uns tocam-nos, outros não. Para mim,
Ange-Jacques Gabriel é um arquitecto muito mais interessante do que Siza
ou Souto, mas isso é o meu gosto: não é nenhum dogma de fé. Quanto às
cores que denotam “bom” ou “mau” gosto: actualmente tenho uma sala
pintada de branco, mas quando comprei a minha casa de betão armado com
vidros duplos, pintei a sala de cor-de-rosa. Os meus amigos ingleses
diziam “what a marvellous colour!”; os portugueses, “foste tu que
escolheste esta cor?”
Claro que, como mero professor
universitário, nunca tive nem terei dinheiro para ter pratos do reinado
de Luís XV, mas vivo perfeitamente bem sem eles – aliás, acho que o
lugar deles é justamente no museu. Quando vou a Lisboa, ainda vejo
pessoas a dar um beijinho e a tratar os filhos por você, ao que, da
perspectiva da minha nova identidade coimbrã, acabo por achar piada. Eu
próprio (confesso) também dou um beijinho às amigas de antigamente e
trato por você (confesso) os filhos delas, que conheço desde que
nasceram. Não o faço por acreditar no dogma de uma classe social a que
não pertenço, mas por achar vagamente divertido. Mas o mais divertido é
sentar-me nas belas casas-de-jantar impecavelmente pintadas de branco,
com as suas pratas e porcelanas da Companhia das Índias, e ver à minha
frente um copo de vinho rosé. Qualquer dia vai ser chique dar dois
beijinhos e tratar os filhos por tu. Nas questões de gosto, é tudo tão
arbitrário.
O Lugar Supraceleste, Livros Cotovia, 2015. por Frederico Lourenço