domingo, 6 de julho de 2014

do blogue "Antologia do Esquecimento"


Se Deus existisse, o problema demográfico estaria resolvido, o homem resignar-se-ia à função de espalhar pelo mundo a semente divina, sémen, gérmen que o Inferno reivindica, mas não existindo senão como sombra sem corpo, sombra debaixo da qual nos protegemos do sol, fica o homem parado, sentado, deitado a fingir que caminha, que tem direcção, quando, na realidade, só dentro da sua cabeça saltam do lado esquerdo para o direito e do direito para o esquerdo os neurónios, enquanto nos nervos as sinapses proliferam aleatoriamente o desespero que é andar emparedado com a inexistência de Deus, mas se Deus existisse teríamos algo com que nos entreter, não andaríamos nesta azáfama de trabalhos comezinhos e poemas desunhados, porque Deus seria uma inesgotável fonte de transpiração, nem respirar preciso seria, apenas e tão-somente os corpos estrumando as azinhagas, que se Deus existisse nunca as Igrejas teriam sido erguidas e por elas nem um escravo teria morrido, que raio de vocação, bastariam riachos de água pura, marés sem navios, naufrágios, talvez, de peixes afoitos e mortes apenas as dos pássaros que, saturados do voo, não tivessem onde pousar, se Deus existisse eu não estaria aqui, agora, neste momento, a olhar para o céu nublado de Junho, com a janela do sótão aberta para receber o ar fresco do fim da tarde, martelando ao acaso palavras sem sentido, teria outros divertimentos tais como, quem sabe, pendurar-me numa sombra, caminhar sobre as águas (perdoem-me o plágio), inventar asas para que o tédio debandasse ou tentar compreender por que criou Deus o homem, ainda por cima à sua imagem e semelhança, porque se o homem foi criado à semelhança de Deus a esperança que nos resta de um Deus digno é ainda mais ténue, digo eu que creio em Homem Todo Poderoso e na semente que em seu corpo semeia o princípio e o fim de todas as guerras, pois se Deus existisse suponho que não existiria o silêncio nem o vazio nem a solidão nem a distância, estaríamos todos unidos pela vibração da luz, que é como quem diz contraluz, o que de mim sobra nos outros e o que dos outros em mim medra, que em existindo Ele, o Sagrado, o Divino, minhas filhas não diriam meu pai e eu, diriam alergias.

Com a devida vénia do blogue " Antologia do Esquecimento"

Nota minha: este blogue tem textos muito bons e surpreendentes, to say the least, mas já me conhecem e gosto de deitar "pedradas no charco" para reflexão e por isso o publico sem os meus comentários àcerca do conteúdo. Gostei sim, muito, do estilo, o resto é do meu foro íntimo.

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