terça-feira, 27 de dezembro de 2011
Memórias dos meus Natais (parte 2)
O meu Avô paterno, que era o mais velho da Família, foi durante 50 anos o Engenheiro que se formou com a classificação mais alta em Portugal (20 valores). Tinha várias especialidades nos cursos que fez, desde engenharia Civil e Industrial, Hidráulica (foi o Presidente de todas as barragens portuguesas) Mecânica e várias outras vertentes. Foi Inspector Superior das Obras Públicas mas basta de explanar o curriculum, pois é muito vasto, rico e honroso nos postos de topo que ocupou na Administração Pública, servindo o seu País.
Foi muito cedo para Moçambique aonde com 28 anos foi Presidente dos Portos e dos Caminhos de Ferro bem como Administrador dos Cimentos de Moçambique da família Sommer.
O seu Pai e meu Bisavô veio da Índia como Presidente do Tribunal da Relação ocupar o segundo posto hierárquico do Estado, o de Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Narro tudo isto para tentar definir os contornos da personalidade do meu Avô paterno. Era indubitavelmente inteligente, culto e letrado, muito aberto e desempoeirado de ideias, monárquico, corajoso na defesa dos seus direitos e convicções e muito humano, mas sem “papas na língua”!
Foi convidado várias vezes para Ministro das Obras Públicas mas dizia sempre que na nossa Família não havia “cangas”!
Não foi um político e preferiu ser um excelente e reconhecido profissional, com liberdade para fazer o que queria! A sua proficiência criava-lhe a autoridade para dirigir grandes empresas do Estado, fazer estudos científicos ( as cheias do Tejo, tendo ganho um prémio internacional), e possuía uma segurança no que dizia ou fazia que perdurava para além do servilismo político. Recebeu apesar disso inúmeras e importantes condecorações pelos serviços prestados.
Tanto ele como o meu Tio Luis, bem como o terceiro Tio de que falei anteriormente e que morreu muito novo nasceram na Índia Portuguesa e aí foram educados. Tendo o meu Bisavô atingido o topo da carreira da Magistratura (como referi acima foi Presidente do STJ) este meu Tio morreu sendo Delegado do Procurador da Corôa em Bardez na Índia Portuguesa. Junto o retrato de ambos, pois é uma engraçada coincidência!
Do património herdado aqui na Metrópole o meu Avô ficou com as casas e quintas em Celorico da Beira e o Tio Luis com a magnífica moradia na avenida do parque do casino do Estoril, a última antes das Arcadas de quem desce em direcção ao mar. Infelizmente hoje já não existe nenhuma nessa avenida!
O Avô sempre que podia raspava-se para a Quinta e ia de carro num Dodge gigantesco azul com strapontans (bancos que no meio do carro se dobravam quando não eram utilizados). A estrada da Beira era medonha e cheia de curvas e levava-se horas até à Quinta. O Avô também ia muitas vezes de comboio, aproveitando a viagem para escrever e ler. Quando a Avó decidia ir com as criadas era no dito carro que viajavam e eram conhecidas as fúrias do Avô quando o pessoal que ia espremido nos referidos strapontans, resolvia dizer que estava enjoado, forçando a paragens com as respectivas consequências para “fora de bordo”!
Nós netos mais velhos, passávamos lá boa parte de Setembro nas vindimas e também esporadicamente noutra altura do ano, mas fazia muito frio pois era perto da Serra da Estrela e gostávamos mais das praias amenas do Estoril.
Voltando de novo a Lisboa, eu ia muitas vezes estudar para casa dos Avós e claro, sem eles em casa e as criadas ocupadas nas suas lides caseiras, punha-me a espiolhar a biblioteca do Avô. Foi lá que li desde muito cedo, Henry Miller no seu “Sexus, Nexus and Plexus”, “Lady Chatterly” , o Marquês de Sade, no campo da iniciação à sexualidade.
Mas tomei contacto com Aquilino tendo herdado belíssimas edições com dedicatórias efusivas e de admiração para o Avô, o nosso Eça e Camilo e tantos outros.
Era uma biblioteca ecléctica com um pouco de tudo, desde os autores clássicos de sempre até aos pensadores desconformes com a tradição do regime. Estavam esses, em inglês, ou francês ou mesmo italiano: era por causa da censura, e por isso não se editavam nem vendiam em português.
Sartre, Nietzsche, Marx, Barthes, e toda uma plêiade de pensadores ilustres que permitiam ver mais claro outras ideias que não só as do "establishement". Mais tarde percebi o que o Avô queria dizer com a canga: ser-se fidalgo é ser-se livre no pensar, ter ideias próprias e saber distinguir o bem do mal, mas não segundo nenhuma cartilha.
O Avô, com os “Burra”, caseiros na Quinta desde gerações imemoriais era de uma humanidade e desvelo enormes, sobretudo quando precisavam de protecção, fosse na velhice, num aperto, na partilha generosa dos produtos da Quinta do Tólfão ( eles tinham 21 filhos e a Avó inscreveu a Maria da Burra no prémio da “Mãe de Portugal” que ganhou, com compensações monetárias e de apoio à educação) mas também sabia exigir e quando era preciso punha-os na ordem…de alguma mandraça.
Fui a vários casamentos de alguns dos filhos do Manel da Burra, todos lá na Quinta na zona das parreiras das vinhas sem toldos a não ser as latadas e mesas corridas de madeira com bancos de cada lado, com toalhas brancas limpíssimas e tudo quanto era preciso para uma festa farta e rija.Eu pasmava pela variedade de pratos e qualidade da comida e da bebida.
Acompanhava os Avós que eram normalmente padrinhos e depois de algum tempo quando se retiravam, ficava solto nos cantares e dançares em perfeita sintonia com aqueles que tão bem sabiam fabricar os deliciosos queijos da serra que comíamos à fartazana em Lisboa, a excelente pinga, a fruta fresca e deliciosa sem pesticidas – fiquei a adorar pêros bravos esmolfos que eles plantavam na quinta – do azeite puro, dos borregos, da vitela,do leite creme, dum sem fim de vida sã e prazenteira que ainda povoa o meu subconsciente e aonde vou buscar forças quando estou mais enfronhado nos meus projectos citadinos e internacionais!
A "Casa do Paço" era na Vila e por isso era um programa irmos com o Avô, passear na Quinta do Tólfão que ficava fóra de Celorico, mas não muito longe.
(continua)
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