quarta-feira, 21 de julho de 2010

O jantar no Brasil no século XIX


O JANTAR NO BRASIL

DEBRET, Jean-Baptiste. O jantar

Subordinada às exigências da vida, a hora do jantar variava, no Rio de Janeiro, de acordo com a profissão do dono da casa. O empregado jantava às duas horas, depois da saída do escritório; o negociante inglês deixava a sua loja na cidade ali pelas cinco horas da tarde, para não mais voltar; montava a cavalo e, chegando à sua residência num dos arrabaldes mais arejados da cidade, jantava às seis horas da tarde. O brasileiro de outrora sempre jantou ao meio-dia e o negociante hoje a uma hora.

Era muito importante, principalmente para o estrangeiro que desejasse comprar alguma coisa numa loja, evitar de perturbar o jantar do negociante pois este, à mesa, sempre mandava responder que não tinha o que o cliente queria. Em geral não era costume apresentar-se numa casa brasileira na hora do jantar, mesmo porque não se era recebido durante o jantar dos donos. Muitas razões se opunham: em primeiro lugar o hábito de ficar tranquilamente à vontade sob uma temperatura que leva, naturalmente, ao abandono de toda etiqueta; em seguida a negligência do traje, tolerada durante a refeição; e, finalmente, uma disposição para o sossego que para alguns precede e para todos segue imediatamente o jantar. Esse repouso necessário ao brasileiro, termina por um sono prolongado, de duas ou três horas, a que se dá o nome de sesta.

DEBRET, Jean-Baptiste. A sesta

No Rio, como em todas as outras cidades do Brasil, é costume, durante o tête-à-tête de um jantar conjugal, que o marido se ocupe silenciosamente com seus negócios e a mulher se distraia com os negrinhos que substituem os doguezinhos, hoje quase completamente desaparecidos na Europa. Esses molecotes mimados até a idade de cinco ou seis anos, são em seguida entregues à tirania dos outros escravos que os domam a chicotadas e os habituam assim a compartilhar com eles das fadigas e dissabores do trabalho. Essas pobres crianças revoltadas por não mais receberem das mãos carinhosas de suas donas manjares suculentos e doces, procuram compensar a falta roubando as frutas do jardim ou disputando aos animais domésticos os restos de comida que sua gulodice, repentinamente contrariada, leva a saborear com verdadeira sofreguidão.

Quanto ao jantar em si, compõe-se, para um homem abastado, de uma sopa de pão e caldo gordo, chamado caldo de substância, porque é feita com um enorme pedaço de carne de vaca, salsichas, tomates, toucinho, couves, imensos rabanetes brancos com suas folhas, chamados impropriamente nabos etc., tudo bem cozido. No momento de pôr a sopa à mesa, acrescentam-se algumas folhas de hortelã e mais comumente outras de uma erva cujo cheiro muito forte dá-lhe um gosto marcado bastante desagradável para quem não está acostumado. Serve-se ao mesmo tempo o cozido, ou melhor, um monte de diversas espécies de carnes e legumes de gostos muito variados embora cozidos juntos; ao lado coloca-se sempre o indispensável escaldado (flor de farinha de mandioca) que se mistura com caldo de carne ou de tomates ou ainda com camarões; uma colher dessa substância farinhosa semi-líquida, colocada no prato cada vez que se come um novo alimento, substitui o pão, que nessa época não era usado ao jantar. Ao lado do escaldado, e no centro da mesa, vê-se a insossa galinha com arroz, escoltada porém por um prato de verduras cozidas extremamente apimentado. Perto dela brilha uma resplendente pirâmide de laranjas perfumadas, logo cortadas em quartos e distribuídas a todos os convivas para acalmar a irritação da boca já cauterizada pela pimenta. Felizmente esse suco balsâmico, acrescido a cada novo alimento, refresca a mucosa, provoca a salivação e permite apreciar-se em seu devido valor a natural suculência do assado. Os paladares estragados, para os quais um quarto de laranja não passa de um luxo habitual, acrescentam sem escrúpulo ao assado o molho, preparação feita a frio com a malagueta esmagada simplesmente no vinagre, prato permanente e de rigor para o brasileiro de todas as classes. Finalmente, o jantar se completa com uma salada inteiramente recoberta de enormes fatias de cebola crua e de azeitonas escuras e rançosas (tão apreciadas em Portugal, de onde vêm, assim como o azeite de tempero que tem o mesmo gosto detestável). A esses pratos, sucedem, como sobremesa, o doce-de-arroz frio, excessivamente salpicado de canela, o queijo de Minas, e mais recentemente, diversas espécies de queijos holandeses e ingleses; as laranjas tornam a aparecer com as outras frutas do país: ananases, maracujás, pitangas, melancias, jambos, jabuticabas, mangas, cajás, frutas do conde, etc.

Os vinhos de Madeira e do Porto são servidos em cálices, com os quais se saúdam cada vez que bebem: além disso, um enorme copo, que os criados têm o cuidado de manter sempre cheios de água pura e fresca, serve a todos os convivas para beberem à vontade. A refeição termina com o café.

Passando-se ao humilde jantar do pequeno negociante e sua família, vê-se, com espanto, que se compõe apenas de um miserável pedaço de carne seca, de três a quatro polegadas quadradas e somente meio dedo de espessura; cozinham-no à grande água com um punhado de feijões pretos, cuja farinha cinzenta, muito substancial, tem a vantagem de não fermentar no estômago. Cheio o prato com esse caldo, joga-se nele uma grande pitada de farinha de mandioca, a qual misturada com os feijões esmagados, forma uma pasta consistente que se come com a ponta de uma faca arredondada, de lâmina larga. Essa refeição simples, repetida invariavelmente todos os dias e cuidadosamente escondida dos transeuntes, é feita nos fundos da loja, numa sala que serve igualmente de quarto de dormir. O dono da casa come com os cotovelos fincados na mesa; a mulher com o prato sobre os joelhos, sentada à moda asiática na sua marquesa, e as crianças deitadas ou de cócoras nas esteiras, se enlambuzam à vontade com a pasta comida nas mãos. Mais abastado, o negociante acrescenta à refeição um lombo de porco assado ou o peixe cozido na água com um raminho de salsa, um quarto de cebola e três ou quatro tomates. Mas, para torná-lo mais apetitoso, mergulha cada bocado no molho picante acima descrito; completam a refeição bananas e laranjas. Bebe-se água unicamente. As mulheres e crianças não usam colheres nem garfos; comem todos com os dedos.

Os mais indigentes e os escravos nas fazendas alimentam-se com dois punhados de farinha seca, umedecidos na boca pelo suco de algumas bananas ou laranjas. Finalmente, o mendigo quase nu e repugnante de sujeira, sentado do meio-dia às três à porta de um convento, engorda sossegadamente, alimentado pelos restos que a caridade lhe prodigaliza. Tal é a série de jantares da cidade, após os quais toda a população repousa.

Depois de ter afligido a alma de nossos leitores com a descrição da frugalidade do triste jantar do escravo no Brasil, não me parece sem interesse conduzi-los, por oposição, ao início de luxo moderno desta mesma mesa brasileira.

Lembrarei pois que, em 1817, a cidade do Rio de Janeiro já oferecia aos gastrônomos, recursos bem satisfatórios, provenientes da afluência prevista dos estrangeiros por ocasião da elevação ao trono de dom João VI. Essa nova população trouxe efetivamente com ela a necessidade de satisfazer os hábitos do luxo europeu. O primeiro e mais imperioso desses hábitos era o prazer da mesa, sustentado também pelos ingleses e alemães, comerciantes ou viajantes vindos inicialmente em maior número. Esse prazer, fonte de excessos, mas sempre baseado na necessidade de comer, dá ensejo, por isso mesmo, a uma especulação certa, monopólio de que se garantiram os italianos, cozinheiros por instinto e primeiros sorveteiros do mundo civilizado. Rio de Janeiro teve, por conseguinte, nessa época, seus Néos, seus Tortonis, em verdade reunidos em uma só pessoa, mas de talento e de atividade, que se encarregava com êxito de todas as refeições magníficas e cujo estabelecimento florescente oferecia aos oficiais portugueses, encantados de encontrar no Brasil uma parcela dos prazeres que haviam gozado em Lisboa, banquetes e serviços particulares delicadamente executados.

Encorajados com o êxito do restaurador, outros italianos abriram sucessivamente um certo número de casas de comestíveis, bem abastecidas de massas delicadas, azeites superfinos, frios bem conservados e frutas secas de primeira qualidade, e o desejo muito louvável de se sustentarem pela cooperação mútua levou-os a se instalarem numa rua já reputada pela presença de um dos três únicos padeiros da cidade nessa época. A reputação merecida desse empório (aliás bastante caro) cresceu de tal maneira, que hoje todo o verdadeiro conhecedor sente subir-lhe a água na boca ao ouvir o nome da rua do Rosário, bem construída e memorável para todo o gastrônomo que tenha visitado a capital do Brasil; vantajosamente situada no centro comercial da cidade, comunica-se por uma das extremidades com a rua Direita (rua Saint-Honoré, de Paris, no Rio de Janeiro).

Por outro lado, um francês se encarregou do abastecimento de farinha e a padaria progrediu rapidamente graças ao acréscimo de consumo provocado pela prodigiosa afluência de seus compatriotas comedores de pão. Outras padarias se instalaram posteriormente, de alemães e italianos, dignas rivais das francesas que existem agora.

É a um desses padeiros franceses, (Maçon) também proprietário de uma chácara perto da cidade, que se deve em parte a melhoria progressiva da cultura de legumes, cujas primeiras experiências foram suas, bem como o comércio de sementes desse gênero vindas da Europa que se faz na sua padaria. Entretanto, é de observar que o legume francês, produzido com sementes brasileiras degenera de maneira incrível já no primeiro ano de cultura. O nabo por exemplo, perde o açúcar e torna-se ardido e fibroso como um rabanete. O mesmo ocorre com diversas saladas.

É o conjunto dessas importações européias, naturalizadas há dezesseis anos no Rio de Janeiro, que alimenta hoje o luxo da mesa brasileira.

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