domingo, 18 de julho de 2010

4ª Carta do meu primo Luis Bernardo


Meu Caro Manuel,

Hoje tive um encontro fascinante com Antónia Rodrigues.

O seu pai dedicava-se à vida marítima e, ao que parece, fez algumas viagens à Terra Nova, quando da barra de Aveiro saía anualmente para aquelas paragens um grande número de embarcações para a pesca do bacalhau.

Segundo me disse, a mãe tratava dos trabalhos domésticos, sempre pesados e sempre complicados, porque era grande a sua prole.

Os trabalhos marítimos, as doenças e não poucas contrariedades acabrunharam demasiadamente o seu pai Simão Rodrigues que, rodeado de filhos e de miséria, se viu obrigado a mandar esta filha para Lisboa, onde haveria de viver com uma irmã que lá estava casada e em melhores circunstâncias.

Confessou-me que pouco depois de haver chegado a Lisboa, repugnavam-lhe os trabalhos domésticos e recusava-se a executá-los.

Em virtude da sua índole insubmissa, tanto a sua irmã como o cunhado, repreendiam-na, chegando mesmo a ameaçá-la e espancá-la, mas Antónia Rodrigues fugia de casa com muita frequência.

Decidiu então, em 1593, disfarçar-se de homem, adoptando o nome de António Rodrigues e conseguiu emprego na tripulação de um navio carregado de trigo, que zarpou para a possessão portuguesa de Mazagão, em Marrocos.

Narrou-me que ela própria cortou os seus cabelos e, vestida com as roupas que havia comprado, apresentou-se ao capitão da caravela, pedindo-lhe que admitisse António Rodrigues, como simples grumete e sem remuneração, além do frugal sustento, que durante a viagem poderia receber como qualquer dos seus companheiros.

Sem incidente notável, entrou a caravela em Mazagão. Tratou de despedir-se do serviço marítimo, tendo-se dirigido ao governador militar da praça e alistou-se, como simples soldado.

Mazagão era uma praça do império de Marrocos e pertenceu, desde 1502, aos portugueses, e em 1562, fizeram ali os mouros diversas tentativas, para se apossarem da praça, mas num encontro foram repelidos.

António Rodrigues, agora como soldado, mostrava-se sempre intrépido nos combates e hábil no manejo das armas, pelo que chegou a ser incumbido do comando de algumas tropas em diversos recontros.

Um dia soube que os mouros pretendiam fazer uma sortida de noite aos campos mais próximos e destruir as searas, que então estavam muito abundantes e quase maduras. Animou-se pelo ensejo de alcançar maior glória e pediu ao governador da praça que lhe entregasse um troço de tropas, para, sob o seu comando, fazer uma derrota completa nas hostes mauritanas. O governador acedeu ao pedido, e quando os mouros menos os esperavam, aparece o jovem militar com a sua tropa e com tanta valentia se houveram os portugueses, e tão bem comandados foram, que os invasores tiveram de fugir feridos e envergonhados.

António Rodrigues entrou em Mazagão, ouvindo as aclamações de vitória e recebendo os maiores elogios. Por este e já por outros feitos foi elevado a oficial, sendo então integrado à cavalaria da praça.

Não poucas damas se apaixonaram por António Rodrigues e ele facilmente deixava alimentar essas paixões, para assim poder mais facilmente encobrir a verdade do seu sexo. Entre aquelas damas, conta-se principalmente D. Beatriz de Meneses, filha de D. Diogo de Mendonça, um dos principais fidalgos, dos que então viviam em Mazagão. E tanto se apaixonou que adoeceu gravemente, chegando o pai, que muito a estimava, a recear que ela sucumbisse.

D. Diogo entendeu-se com o governador da praça, insinuando-lhe que obrigasse António Rodrigues a desposar D. Beatriz. Chamado o jovem oficial à presença do governador e tendo ouvido a proposta do casamento, corou, tremeu e perdeu completamente a coragem.

Depois de muita insistência por parte do governador, Antónia Rodrigues pediu para que não a castigassem; e, entre soluços, declarou que não era homem. Contou então toda a sua história e pediu perdão, por haver vivido com tal disfarce.

O governador fez logo espalhar por toda a praça aquela notícia. Antónia Rodrigues vestiu os trajes do seu verdadeiro sexo e foi levada pelas ruas de Mazagão, ouvindo as aclamações do povo.

Logo que se soube o verdadeiro sexo de Antónia Rodrigues, como era formosa e inteligente, não faltaram pretendentes que a desejassem para esposa. Entre eles escolheu Antónia um brioso oficial, e o seu casamento foi celebrado com grandes festejos.

Quando Antónia Rodrigues tinha trinta e cinco anos, voltou para Portugal, em companhia de seu marido e de um filho, que ainda era criança. Pouco depois ficou viúva.

Recebe um abraço do teu primo muito afeiçoado

Luis Bernardo

Sem comentários:

Enviar um comentário