domingo, 19 de junho de 2016

o Doutor da mula ruça


Pois a graça disto tudo está em que, no ano de 1534, um tal António Lopes exercia medicina, em Évora onde era muito conhecido, mas não tinha diploma. Tinha estudado em Alcalá de Henares e, por falta de verba para pagar o «canudo», saiu de lá sem o respectivo diploma. Vai daí escreveu ao rei Dom João III e pediu-lhe que o mandasse analisar pelos médicos da corte de modo a poder exercer a sua actividade sem qualquer contestação. Em 23 de Maio de 1534, o livro da Chancelaria de D. João III refere:

«Dom Joham 3º a quantos esta minha carta virem faço saber que o doutor António Lopes, físico de Évora, me apresentou ua carta do doutor Diogo Lopes, meu físico moor, de que o theor de verbo é o seguinte: O doutor Diogo Lopes, comendador da Ordem de Christo e físico moor del Rey Nosso senhor em seus regnos e senhorios, faço saber a quantos esta minha carta de doutorado virem como por António Lopes, físico da mula ruça, morador em esta Évora, me foy apresentado hum allvará dellRey nosso senhor, por sua alteza assygnado e passado per sua chancelaria do qual o trellado he o seguinte: Eu ell Rey faço saber a vós Doutor Diogo Lopes seu fisico moor, que António Lopes, físico da mula ruça, morador en esta cidade, me dice por sua petiçam que elle estudou nove ou dez annos no estudo de Alcala de Henares.»

Os dicionários esclarecem que a expressão “doutor da mula ruça” usada em registo familiar e em tom depreciativo, se aplica a «indivíduos que possuem um título ou um diploma, mas que não têm os conhecimentos de que se dizem detentores». Por extensão, a expressão “doutor da mula ruça” aplica-se vulgarmente ao chamado charlatão, aquele que tenta enganar os outros, fazendo-se passar por algo que afinal não é, neste caso, fingindo ser muito erudito.
No entanto, a história que se conta sobre o 1.º doutor da mula ruça aponta para um significado da expressão um pouco diferente, quase oposto, que é o do homem que exerce a prática (e tem os conhecimentos) mas que não tem o diploma que o habilitaria oficialmente para isso.

Então quem foi este doutor da mula ruça? De acordo com vários autores, houve um homem no século XVI em Évora, de nome António Lopes, que era conhecido como o “físico da mula ruça”, e exercia medicina sem possuir o grau de doutor. Acontece que este senhor tinha estudado em Alcalá de Henares, em Espanha, perto de Madrid. Mas uns dizem que por falta de dinheiro não pôde pagar o diploma, e portanto acabou por exercer sem ele; outros contam que obteve o grau de bacharel, mas havia certas reservas em relação à sua prática, porque não era doutor pela Universidade de Lisboa. Seja como for, o que acontece é que ele terá pedido ao rei D. João III, uma espécie de “equivalência”, como agora se diria (de bacharel, o grau que teria adquirido em Espanha, para doutor) ou, se quisermos, uma “creditação de competências”, como agora também se faz, ao abrigo do Processo de Bolonha, se considerarmos que ele não chegou a obter o diploma em Espanha, ainda que tivesse frequentado a Universidade. O que parece certo é que o Rei, a pedido deste António Lopes, solicitou ao físico-mor do reino, Diogo Lopes, que o examinasse para se avaliar a sua competência para exercer medicina. O resultado da avaliação foi positivo e há um registo no Livro de Chancelaria de D. João III que declara precisamente isso: «que António Lopes, físico da mula ruça, morador em esta cidade me disse por sua petição que ele estudou nove ou dez anos no estudo de Alcalá» (excerto da carta régia de 23 de Maio de 1534).

Portanto, fica a ideia de que este homem exerceu a profissão antes de obter oficialmente o grau academico, que solicitou esse grau por carta régia e não pela via normal, que seria um diploma da universidade, e que era conhecido como o “doutor da mula ruça”, talvez por se deslocar habitualmente numa mula de cor parda ou acinzentada. Não temos a certeza. Mas pelos vistos a sua actividade era contestada pelo facto de ele a exercer sem a mesma legitimidade que os outro físicos, o que o levou a sentir a necessidade de requerer o reconhecimento da sua competência. Algo que parece hoje novidade, mas que afinal não é...


Fui descobrir esta curiosidade num livro de Orlando Neves, intitulado «Dicionário da origem das frases feitas». A edição é da Lello & Irmão Editores – Porto.

Info obtida gentilmente do Doutor João das Regras

3 comentários:

  1. Boa noite gostava que me informassem se é possível partilhar o texto O Doutor da Mula Russa na minha página no Facebook e se a resposta for afirmativa se posso omitir o nome do Autor ou é obrigatório e por fim se tenho de pagar algum valor.
    Fico a aguardar a vossa resposta para o e-mail Gesnelson@hotmail.com
    CUMPRIMENTOS

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  2. Boa noite
    Gostaria de saber se posso partilhar o vosso texto O Doutor da Mula Rusa no meu Site no Facebook ? Se a resposta for afirmativa , tenho algum valor a pagar e se tenho no texto de fazer referencia ao Autor.
    Fico a aguardar resposta, para Gesnelson@hotmail.com
    Cumprimentos
    Nelson Fernandes
    Cumprimentos

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