domingo, 25 de novembro de 2012

Resposta do meu primo Luís Bernardo – a ponte para a felicidade


Meu Caríssimo Manuel,

Achei divertida a ideia de quereres visionar com antecipação o que dirão de ti quando morreres. Só tu tratas um tema tão cinzento com uma leveza despudorada.

Pois vou-te dizer que não tem a menor importância o que disserem ou o que se esquecerem de dizer de ti, no dia em que estiveres morto.

O mais importante é estares vivo e marcares com a tua presença a vida de outros com luminosidade e intensidade, umas vezes nem sempre bem-sucedida por tantas razões e com culpas de todas as partes, outras porque a tua condição humana é o que é.

Nunca ninguém ganha unânimemente a simpatia ou o ódio de toda a gente, por isso considera um assunto irrelevante.

Esta ponte para cá, com que ilustras a minha carta, é o bálsamo para te animar no dia-a-dia. Não achas que apetece ter um caminho que conduza à felicidade?

Olha estive com os teus Pais e preparam-se afanosamente para a época das festas. Chamaram a Cacilda, a vossa cozinheira de toda a vida para os jantares de grande esmero – o bigodão que ela tinha! – mas que era esquecido no minuto seguinte pelas iguarias que fazia.
 
Vão convidar, uma vez mais a Família toda e a tua Mãe pediu-me que te dissesse que uma das sobremesas vai ser aquele doce que a Cacilda era exímia em fazer, com uma massa leve de castanha, doces de ovos e natas dentro de uma capa de caramelo. Tu adoras!  

O teu Pai anda muito entretido a ler sobre como plantar uma rosa a que quer dar o nome da tua Mãe, mas parece que até agora as tentativas têm sido goradas. Saem feias e sem cheiro. Lembrei-o de mandar perguntar a algum jardineiro da casa da Rainha-Mãe de Inglaterra como costumam fazer. Achou uma excelente ideia.

Por aqui tudo muito agitado pois um novo sistema de comunicações com a Terra foi implementado e para além dos e-mails, parece que tem a ver com uma modalidade de telepatia imediata - o que penso, é transmitido à tua mente com as sensações e emoções todas.

Eu acho mais produtivas estas cartas. Mas depois te contarei ou até, em assuntos mais íntimos entre nós, vou tentar aprender o novo sistema.

Quando estiveres mais tristonho ou desanimado manda-me um aviso por carta e se for urgente usamos o outro método. Sempre é mais rápido!

Olha diverte-te na viagem ao Brasil e manda-me uma carta de lá! Gosto muito da música brasileira e nas festas dos teus Pais há sempre ou fado, ou samba ou sevilhanas…no fundo as vossas origens mais divertidas. Quando vêm jantar os Avós Vice-Reis, aí fia mais fino pois no tempo deles não havia nada disso e os sons são da cítara e das vozes melodiosas do Oriente.

Olha bem para a ponte e alegra-te por um dia a poderes cruzar e nem vais querer saber o que dirão de ti. Cheirará a mofo, e ou a sabujice, inveja, ou mentira…raramente a verdade!

Como sabes bem, passado o período de “nojo” é a seiva da vida que move as vossas mentes e sobrevém o esquecimento progressivo, mesmo após juras de amor eterno e de promessas de não olvídio

E ainda bem, pois quando chegares aqui é muito mais divertido! Isso é que vai ser!

Um abraço muito apertado do teu primo 

Luís Bernardo

domingo, 18 de novembro de 2012

Carta ao meu primo Luis Bernardo - elogios na missa do meu 7º dia da morte


Meu Querido Luís Bernardo,

Tenho ido ultimamente a vários enterros de familiares de amigos, uns mais novos e outros já mais velhos.

Recebem do púlpito dos padres e até de filhos ou netos, enormes elogios e palavras lindas sobre o que fizeram na vida, directamente para o caixão e perante muita gente.

Eu também quero, quando morrer!  -  diz-me o que é preciso fazer para isso.

Houve alguns que foram umas pestes, outros chatos e pesados, outros bêbados, e mais outros maus maridos e ou mulheres, péssimos filhos, irmãos, primos, patrões e até leitores pois nunca abriram uma página de um livro e no fim, tau!, toda a gente a dizer bem.

Puxa, eu sei que não sou perfeito, mas sou educadinho, tenho um bonito sorriso, franco e aberto, já li muitos livros e até te escrevo, não copiei muito na escola, não roubei dinheiro da carteira da minha Mãe, será que tenho alguma chance?

Vou-te dizer desde já o que queria que dissessem quando eu morrer: que amei muito a vida, a verdade, a inteligência, a ousadia e a coragem em ser-se como se é e sobretudo pensei muito mais vezes nos outros do que em mim, mesmo que não soubessem ou tivessem, sequer, reparado. No final, o maior elogio seria o de que fui um pouco atrevido no amor e talvez na forma diferente de amar, mas o meu braço esteve sempre lá. 

Se houver alguma daquelas velhotas beatas da paróquia que queiram pôr uma vela em forma de parte do corpo, a escolha será a do coração.

Ouve lá, Luís Bernardo, tu não me falhes nos conselhos para ser bem sucedido, que eu sou vaidoso e invejoso. Tanto fdp a ter discursos bonitos e inflamados e eu, um bom menino, sem vir a ter nada!  

Teu muito dedicado primo e esperançado na tua consultoria, aí usa-se a expressão?

Manuel



sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Os 90 anos de José Saramago, são festejados hoje pela sua Fundação no dia do “Desassossego”.




“Dentro ou fora de mim, todos os dias acontece algo que me surpreende, algo que me comove, desde a possibilidade do impossível a todos os sonhos e ilusões. É essa a matéria da minha escrita, por isso escrevo e por isso me sinto tão bem a escrever aquilo que sinto.”
José Saramago

Os 90 anos de José Saramago, são festejados hoje pela sua Fundação no dia do “Desassossego”. 

Não admirei a pessoa política: era um adversário das minhas ideias. Um homem azedo contra o seu país, um comunista ortodoxo a que nem a idade adoçou.

Um ateu ácido mas curiosamente pressentia-se que não podia viver sem o confronto com a ideia do Deus que ele escreveu “de pernas para o ar”, pelo menos Aquele a quem a maioria dos seus detratores o acusava de insultar, de troçar, de tratar mal. Às vezes há este ódio/rejeição que se torna numa aliança indelével, indissociável e duradoura. Não diria Amor, mas respeito não confessado.

Mas hoje venho falar-vos de como li Saramago “contra tudo e contra todos” e como de cada livro guardo impressões diversas, mas sempre de enorme deleite pela coragem da escrita livre, sem medo de contrariar o pré-estabelecido. E disso gosto: não há quem me tire o doce sabor da liberdade.

Escrevia a Rita Ferro, não sei se citando alguém ou da sua lavra, que “os cumpridores zelosos, os cumpridores em tudo, são as criaturas mais desumanas que conheci - não é aforisma nem generalização, é observação pessoal e contingente” e ler Saramago e gostar é fogo de Inquisição, é radicalismo, são juízos de valor e acusações convictas de esquerdismo e ateísmo.

Nos primórdios do meu blogue insurgi-me contra um energúmeno que ao me criticar por ter elogiado Saramago-escritor na sua morte, ousou escrever: “Nunca li e não gostei”!

Em “Caim” um livro de leitura deliciosa, concordei com ele quando ressaltou da Bíblia episódios de um Deus castigador: o sacrifício de Isaac, o Dilúvio, e outros momentos que negam a visão do Deus amor. Que perplexidade para quem se converte ou começa desde jovem a aprender a doutrina! Porque tantas calamidades a punir os Homens feitos à Sua imagem e semelhança?

Mas, o que quero dizer hoje é que o que Saramago acima escreve e no qual me revejo inteiramente, é uma fonte de inspiração para um aprendiz da escrita como eu. Nela encontro evasão, liberdade de pensamento sem grilhetas, uma intimidade com o meu eu, uma espécie de único oásis aonde contrastam as minhas forças do “yin-yang”!

Termino citando Lobo Antunes “Não digas nada, dá-me só a mão. Palavra de honra que não é preciso dizer nada, a mão chega. Parece-te estranho que a mão chegue, não é, mas chega. (…) Se calhar sou uma pessoa carente. Se calhar nem sequer sou carente, sou só parvo.”

domingo, 11 de novembro de 2012

Os Pobrezinhos por António Lobo Antunes

"Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto

(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)

de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros

- O que é que o menino quer, esta gente é assim

e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar

e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis"

domingo, 4 de novembro de 2012

Contos imorais - Crime de colarinho branco (parte III)

Para cada reunião do Conselho de Administração do banco, Brien, na sua qualidade de secretário corporativo do board, tinha sempre que preparar e enviar antecipadamente os pontos da agenda, primeiro para o Presidente e uma vez obtida a sua concordância, circularia pelos restantes Membros.

Reflectia maduramente se deveria conversar em privado com o Presidente antes de incluir na agenda o tema “pedido do Governo” resultante da reunião com Michael ou deixar que o Conselho se confrontasse como um todo, com tão escaldante tema.

O bom senso e profissionalismo aconselhavam a que consultasse Sir Gordon Scott préviamente, pois sendo o Chairman do Abbey National, este era tipicamente um assunto que lhe estaria atribuído por um dos seus pelouros, o das relações ao mais alto nível com outros bancos e instituições oficiais, incluindo o banco central e por arrasto o Governo, este último em circunstâncias excepcionais.

Brien reconheceu que esta era uma circunstância excepcional, mas no mau sentido.

Sir Gordon Scott, não era nem simpático nem tinha fama de ser diligente. Ocupava esta alta posição, bem remunerada e com muitas mordomias pelas suas relações de parentesco com um dos principais accionistas do banco. Estava de saída nos 3 meses seguintes, pois atingiria o fim do seu mandato e na idade da reforma.

Assim sendo, Brien não se sentiu motivado a pedir uma audiência e preferiu arriscar, enviando num dos pontos da agenda para a sua prévia aprovação, uma alínea que dizia “ reunião com representante da tutela “. Havia habitualmente muitas destas por motivos burocráticos, e era Brien quem triava os temas, sendo depois decidido em Conselho quem faria o follow up. Tratava-se sempre de assuntos técnicos e enfadonhos e por isso, Brien estava tranquilo quanto ao retorno da sua agenda sem nenhuma observação do Presidente, permitindo-lhe circular pelos restantes Membros.

A CEO do banco, Mrs. Viviana Hopewell, mulher dos seus 40 anos de idade, muito conceituada e excelente profissional, era casada com um dos accionistas de referência do banco.

Tinha uma excelente relação com Brien, a quem admirava pelas suas qualidades de trabalho, dedicação e competência.

Era muito elegante, o modelo típico da executiva sempre bem vestida, impecávelmente arranjada e perfumada com um aroma que excitava Brien.

Viviana já por várias vezes lhe tinha dado a entender que o apreciava também no seu humor, naturalidade e numa das festas de Natal do banco, tinha até dançado com Brien, de tal maneira enleada ao seu corpo que as suas caras quase tocavam. Disse-lhe que dançava muito bem e que o seu marido era um “pé-de-chumbo” e que ela gostava de música e de ir a dancings.

Brien, num acto de grande ousadia, retorquiu-lhe a sorrir que ela tinha um perfume que ele adorava e que sempre que o sentia ficava agradavelmente perturbado.

Riram-se os dois muito e a música acabou e cada um dirigiu-se para os seus cônjuges que no meio da movimentação da festa, não repararam sequer que ambos tinham dançado tão impròpriamente agarrados.

Nessa tarde, Brien saiu mais cedo do banco, como prometera a Rose, e apanhando um táxi, dirigiu-se ao apartamento dela.

(continua)