quinta-feira, 1 de março de 2012
O " Laisser-Passer" de um africano meu concidadão
Acho que já o disse algumas vezes que sou, há já vários anos, Cônsul-Geral Honorário de um país africano em Portugal.
Tenho uma comunidade residente que não ultrapassa os 300 concidadãos e mantenho uma excelente relação com todos eles.
Defendo-os de patrões relapsos, visito-os nas prisões, de vez em quando ajudo-os materialmente, em suma desempenho a minha função com simplicidade e dedicação, pois sendo tudo gratuito faço-o porque sim!
É uma missão cujas razões são incompreensíveis para muitos amigos mas acho que o facto de penetrar noutra cultura, servir de pai, de irmão e amigo, de protector, de conselheiro, de único ponto de referência para quem está longe das suas terras, é justificação suficiente!
Já não é a primeira vez que sou chamado pelas Autoridades para me deslocar a bordo de um navio para identificar clandestinos.
Passou-se ontem uma história bem triste que passo a partilhar, nem sei bem porquê: talvez porque somos todos seres humanos e a nossa condição pode chegar a situações de grande degradação.
Rapaz de 24 anos, pescador na sua terra. Trabalhando no mar, mais facilmente a sua piroga pôde chegar perto do navio que o levaria a outros destinos, a um melhor futuro que ouve contar. Nem hesita, já noite alta aproximou-se do casco e lançou uma corda que lhe permitiu trepar pela amurada acima deixando para trás o seu ganha-pão, a sua terra e a sua família.
Anichou-se junto dos contentores abertos para tomarem carga na manhã seguinte e escolheu um que lhe pareceu menos abafado e talvez com mais espaço para não lhe dificultar o sítio aonde iria passar 2 semanas até o navio aportar na Europa.
Levava uma pequena sacola de pano com comida para se alimentar parcamente durante uns 10 dias, segundo ele: um pão grande já meio duro, fruta, raízes de plantas, água numa garrafa, um sabonete, peixe seco, mandioca e umas ervas que o curandeiro da aldeia lhe tinha dado para dormir, para as dores, para o desespero se chegasse…
Era de uma zona junto à costa, daí a sua profissão precária de pescador. Na aldeia havia um “príncipe” (paramount chief) que era a quem todos se dirigiam a propósito de tudo e de nada. Aconselhava sobre nascimentos, casamentos, negócios, apaziguava salomónicamente rixas e decidia quem acolher e expulsar da tribo. Assegurava o sustento de todos por quem repartia os bens, produto da exploração da terra e da pesca, bem como da venda de algum minério.
MUSTIFA SENSIE era um dos 18 filhos de SENOSIE SENSIE, o chefe da aldeia.
Tinha anunciado ao pai que desejava um futuro mais promissor fora da terra e este escutara-o em silêncio. Como era o seu filho mais novo, tinha por ele uma grande tolerância e sabendo as circunstâncias em que se realizaria a sua partida, recomendara-lhe força e que o Profeta o protegesse.
Mustifa passara pelo curandeiro que lhe vaticinou sucesso e lhe deu umas mezinhas para a viagem. Ninguém na aldeia fizera perguntas quando no dia a seguir ao da sua partida, a piroga jazia parada junto à praia.
SENOSIE SENSIE estava imperturbável e não dava ares de tristeza, sinal de que não teria havido notícia de algum desaire no mar que tivesse ceifado eventualmente a vida do seu filho predilecto.
O contentor fora cheio de caixas de pescado congelado: garoupas, camarão, lagostins e outros peixes menores a que Mustifa estava habituado.
Se por um lado se satisfizera por aquele reforço inesperado de vitualhas, logo sofreu na pele o frio do pescado congelado em muitas toneladas de caixas frigoríficos e não tendo previsto tal possibilidade só tinha sobre a pele as roupas de um pescador de um país com um calor tórrido permanente.
Vi sair do contentor um africano assustado, escanzelado, com feridas das queimaduras do frio nos braços e nas pernas e cambaleante. A imagem era perturbadora ao ponto de o ter agarrado senão cairia no tombadilho.
Em fila estavam os Agentes da Polícia Judiciária, da Polícia Marítima, o representante do armador, o comandante do navio e eu.
Pediram-lhe os documentos e ele respondeu com uma voz baixa e receosa, que não tinha. A segunda pergunta foi de onde era natural e ele disse que era cidadão do país que eu representava.
Foi-lhe dito pelo Agente da Judiciária que eu era o Cônsul-Geral e que por ser clandestino teria que ser preso e depois de transitada a necessária papelada, devolvido à origem de onde partira.
Num grito rouco atirou-se ao chão e rastejou até aos meus pés e pernas agarrando-os com força ao ponto de me magoar,começando num pranto e pedido de clemência e piedade.
Não vos posso descrever a perturbação com que fiquei, aliás acompanhado por todos os presentes.
Tão perplexo e apiedado por ele que não reagi nos primeiros minutos. Depois estendi-lhe a mão e levantei-o e ele encostou-se literalmente a mim prosseguindo no seu choro baixinho e pedindo-me que o salvasse.
Acalmei-o e disse-lhe umas palavras de serenidade e solicitei ao comandante que o mandasse tratar pelo médico de bordo e lhe desse alimentos. Em seguida e para o sossegar pedi-lhe que aguardasse pois teria uma conferência ali mesmo com as Autoridades presentes.
Sentámo-nos na camarinha do comandante e durante alguns momentos ficámos a “mastigar” em silêncio a visão daquele farrapo humano.
Sobretudo o que me comoveu e me fez decidir fazer tudo o que pudesse em seu auxílio, foi a sensação de perda, de dependência de mim, quando eu valho o que valho!
Auscultadas as Autoridades e feita uma ronda pelas soluções jurídicas de acolhimento ao abrigo do estatuto de refugiado, foram todos unânimes em que era um clandestino indocumentado e que a lei era clara: teria que ser repatriado e eu deveria emitir um “Laisser-Passer” que lhe permitisse viajar até ao seu destino com uma identificação provisória.
Pedi para estar com ele sozinho sem as restantes Autoridades e recolhi as informações que acima referi. Estava mais calmo e já alimentado, sedado e tratado, adormecendo de seguida numa cadeira de braços.
Regressei ao Consulado e fiz o referido “Laissez-Passer” que lhe permitiria, a expensas do armador do navio, viajar de avião para a sua terra, pelo menos de uma forma mais digna.
Prometi-lhe que se voltasse legalmente o ajudaria a singrar na vida e os olhos de gratidão foram a paga de todo esta inquietação que me causou o sofrimento de um africano meu concidadão!
Levou alguns euros, roupa e uma carta para o pai dizendo-lhe que tinha um filho bravo e valente que arrostou dias e semanas muito difíceis mas que soube sobreviver. Dava-lhe as minhas referências consulares para que ele como “príncipe”, pudesse melhor agilizar a vinda oficial do seu filho, se fosse caso disso!
MNA
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