Gosto
sempre de voltar a esta história, interessante para quem não conhece.
Em 2011, com 87 anos, morreu Danielle, a viúva de François Mitterand.
Era uma mulher invulgar. Em 96, no enterro do marido, esteve lado a lado
com Anne Pingeot, amante do Presidente - passe a expressão - e abraçou
publicamente Mazarine Pingeot, filha secreta dessa ligação, que conheceu
nesse dia. Foi duramente criticada pelo
comportamento indigno de uma primeira-dama e, como resposta, endereçou
uma carta ao povo francês que, por si só, vale uma biblioteca. E que
lembra, também, que a classe não é exactamente um par de sapatos
italianos. Só encontrei tradução em português do Brasil:
“Antes
de mais nada, devo deixar claro que não é um pedido de desculpas. Muito
menos um enunciado de justificativas vãs, comum aos covardes ou àqueles
que vivem preocupados em excesso com a opinião dos outros. Aos 71 anos,
vivendo a hora do balanço de uma existência que é um sulco bem traçado e
profundo, já não mais preciso, e nem devo, correr atrás de possíveis
enganos. Vivo o momento em que as sombras já esclarecem e que as
ausências são lindas expressões de perenidade e criação. Sombras e
ausências podem ser tudo, ao passo que luzes e presenças confundem os
mais precipitados, os mais jovens.
Vivi com François 51 anos;
estive com ele em muito desse tempo e me coloquei sempre. Há mulheres
que não se colocam, embora estejam; que não se situam, embora componham o
cenário da situação presumível. Uma vida de altos e baixos. Quando se
vive assim em comum, cria-se uma solda e a consciência de que é preciso
viver depressa. Concentrar talvez seja a palavra. Por isso tentei
entendê-lo, relacionar-me com sua complexidade, com as variações de sua
pessoa e não do seu caráter... Quem entende ou, pelo menos luta para
compreender as variações do outro, o ama realmente. E nunca poderá dizer
que foi enganada ou que jamais enganou. Não nos enganamos, nos
confundimos quando nos perdemos da identidade vital do parceiro,
familiar ou irmão. Ou jamais os conhecemos. Quem não conhece, não tem
enganos. Nas variações do outro, não cabe o apaziguador que destrói tudo
antes do tempo em forma de tranquilidade.
Uma relação a dois
não deve ser apaziguada, mas vibrante, apaixonada, e não enfastiada.
Nessa complexidade vi que meu marido era tão meu amante quanto da
política. Vi, também, que como um homem sensível poderia se enamorar, se
encantar com outras pessoas, sem deixar de me amar. Achar que somos
feitos para um único e fiel amor é hipocrisia, conformismo. É preciso
admitir docemente que um ser humano é capaz de amar apaixonadamente
alguém e depois, com o passar dos anos, amar de forma diferente. Não
somos o centro amorável do mundo do outro.
É preciso aceitar,
também, outros amores que passam a fazer parte desse amor como mais uma
gota d´água que se incorpora ao nosso lado. Aceitei a filha de meu
marido e hoje recebo mensagens do mundo inteiro de filhos angustiados
que me dizem “Obrigado por ter aberto um caminho. Meu pai vai morrer,
mas eu não poderia ir ao enterro porque a mulher dele não aceitava”. É
preciso viver sem mesquinhez, sem um sentido pequeno, lamacento, comum
aos moralistas, aos caluniadores e aos paranóicos azedos que teimam em
sujar tudo. Espero que as pessoas sejam generosas e amplas para
compreender e amar seus parceiros em suas dúvidas, fragilidades,
divisões e pequenas paixões. Isso é amar por inteiro e ter confiança em
si mesmo.”
(Na foto, da esquerda para a direita: Danielle, de
cachecol branco, e o filho, Jean-Christophe, Mazarinne e Anne, esta
última de chapéu, um pouco atrás)
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