O Peninha comprara uma vez em Badajoz, uma capa à espanhola com
alamares, que lhe tinha custado uma fortuna. Um dia haveria de servir,
dizia sempre!
E eis senão quando lê nos jornais que os Reis de
Espanha visitavam oficialmente Portugal, começando pelo Porto. Ainda
tinha para lá a prima Indalécia que morava na Ribeira numa casa modesta
mas que valia um
fortunão. Estava na moda a zona e já tinham oferecido
bastas centenas de milhares de euros pelo espaço, mas a prima não saía
dali senão morta.
O Peninha escreveu-lhe, com muitas mesuras e
louvaminhices, perguntando-lhe se poderia ir pernoitar na sua casa, por
uns dois dias. A razão que tinha alegado era a de que tentaria
aproximar-se de Suas Majestades e deixar-se fotografar em conjunto.
Prometeu à prima Indalécia que se tudo corresse bem ainda lhe arranjava
uma cópia da fotografia. Sempre seria uma honra que poderia partilhar na
vizinhança.
O diabo é que a prima era republicana dos
sete
costados e os avós operários tinham sido fervorosos participantes na
implantação da república. Mas como não via Peninha há muito tempo,
assentiu com bonomia. Morava sozinha, já ia nos 80 e tinha amealhado uns
cobres, nada lhe restava já de muito extraordinário para fazer, pelo
que sempre era uma companhia do parente da capital.
O Peninha
ficou encantado, e na véspera da partida, preparou com cuidado o que
levaria na mala para o Porto. Para ser mais barato, ia numa camioneta da
carreira, mas como hoje em dia já vão pela auto-estrada, levam cerca de
4 horas. Sempre dormia!
Abriu a mala, e começou a por num dos
lados, uns
slips de seda que tinha comprado no chinês, um par de meias
com listas das cores da bandeira de Espanha, uma camisa de
folhos
(lembrou-se de touradas e de sevilhanas) e num saco de veludo pequeno
levava um
recuerdo de Toledo, um género de um colar com o brasão da cidade em bronze
pendente que achou que ficava bem por cima dos
folhos da camisa (sempre
sonhou que um dia teria um colar de mérito como via o seu querido
Presidente Marcelo dar aos mergulhadores nacionais – ele não era menos,
caramba!)! Os botões de punho para a camisa seriam de metal doirado e
esmalte com uma réplica mais pequena do galo de Barcelos da Joana
Vasconcelos ( o disparate do tamanho da obra exposta junto ao Tejo, o
que diriam Suas Majestades?). No fundo era português, era preciso
demonstrá-lo com orgulho.
Hesitou se devia usar um bolero em
tafetá preto, com a frente cavada fazendo ressaltar os
folhos, mas como
no Porto está frio, tendo decidido levar a capa à espanhola que era
forrada a lã, iria sem nada por cima da camisa. Como calças levava umas
presas ao joelho, para deixar ver bem as meias coloridas e de riscas.
Tinha comprado no chinês um perfume de uma marca conhecida, mas falsa,
que ele próprio achou que deitava um
pivete medonho…era de muito má
qualidade, mas paciência, era o que tinha.
Na cabeça levaria uma boina do país basco, com as armas reais presas num alfinete. Daria
sainete.
Finalmente, como botas tinha encontrado umas com que fizera a recruta:
estavam
cambadas e em mau estado, mas ninguém, no meio da multidão iria
reparar e olhar para os pés. Deixou-as no sapateiro para ele as engraxar
e o raio do homem, levou-lhe
€ 4.00, mas brilhavam…lembrou-se de uma
frase fascista : -
cara al sol, mas com os diabos a Espanha era
democrática!
O Peninha achava-se monárquico pelo gosto do brilho
dos Reis e da Nobreza, fossem eles de que país fossem, das
capelines
(tinha aprendido numa revista espanhola que ele comprava religiosamente
todas as semanas –
a iola – ) e sabia o que eram
escarpins e
zibelinas, e
boás, que nada tinham a ver com as
boasonas que lá vinham, e das luvas
de pelica e até das carteiras do
Loéve…era um nome do
catano para dizer,
mas em Portugal o seu monarca era o Presidente Marcelo. O jeito que ele
tinha para se dar ao povo, como os reis devem ser como uns pais para a
plebe, esperto, bem vestido, inteligente, com humor, sabendo o que
dizer…não tinha comparação. Depois ouvira dizer que um fadista era o
pretendente! Achava isso muito reles, agora depois no palácio real o rei
por-se a dedilhar uma guitarra…ainda podia aparecer a Severa e era um
escândalo.
Chegou ao Porto no Domingo pelas 7 horas da tarde, foi
directo para casa da prima Indalécia, que o recebeu de braços abertos. –
Ó filho, quem te viu pequeno e agora estás um homem! E muitos beijos e
abraços. Que entrasse que lhe tinha preparado umas tripas pois estava
frio. Esta moda das
francesinhas, não era com ela.
Peninha, que
era pouco dado às coisas do Porto, disse logo que preferia as
portuguesas às francesas! A prima Indalécia achou muita
pilhéria e
riu-se a valer.
Ficaram à conversa até tarde, mas Peninha vinha
cansado da viagem e queria dormir pois no dia seguinte, era dia de festa
e queria ir impecável.
Levantou-se cedo, veio tomar o
café-da-manhã e deu dois dedos de conversa à prima Indalécia, sempre era
o mínimo. Na véspera tinha-lhe contado do traje que iria levar e a
prima, mulher experimentada e já com o
rabo pelado, achou que era
inapropriado e tentou dizer-lhe de mansinho…mas ele nem deu por isso.
Tomou um rico banho, perfumou-se e manteve a barba de dois dias (sempre
levava a boina basca, com o raio), e começou a vestir-se com volúpia. A
cada peça de roupa mirava-se ao espelho. As cuecas de seda beije
moldavam-se ao sexo e suportavam-no com comodidade, a camisa dos
folhos
fora passada a ferro com goma e estava
entufada. Vestiu as meias
listadas com as cores reais de Espanha, depois as calças que apertavam
nos joelhos, calçou as botas que pareciam um espelho de engraxadas que
estavam, pôs o colar de Toledo ao peito, e depois de pôr a boina
às três
pancadas, rodopiou e pôs a capa sobre os ombros.
Inchou de
orgulho e desceu. A prima Indalécia, de olhar pasmado, só dizia –
valha-te Deus, Peninha, valha-te Deus! Peninha tomou como um elogio de
êxtase e saiu porta fora, não sem antes ter pedido à prima que lhe
emprestasse um
alho-porro do São João ( destes de plástico verde-alface)
pois tinha a ideia que quando chegasse ao pé dos Reis de Espanha, se
fosse bem recebido, seria engraçado dar com ele na cabeça da Rainha ( o
Rei é muito alto, e a Rainha sempre foi do povo, havia de perceber).
Tomou um
ónibus
para os Aliados e reparou que toda a gente o mirava: pensou
inbejosos!
(que eles dizem os
“v” pelos
"b”) e não ligou, mas o próprio motorista
lhe perguntou para aonde ia assim
bestido. Que ia esperar os Reis de
Espanha, respondeu ufano da sua importância.
Mal chegou à Praça, saiu do autocarro e avançou imponente para a cerca de metal que protegia
da zona oficial, o
povoléu assistente.
Já lá estava muita gente e
por isso foi a custo que se foi chegando para a frente. Ouvia uns
risinhos que o incomodavam e um grupo de mitras, começou a insultá-lo.
Não ligou e ficou expectante que Suas Majestades chegassem.
Entretanto, apareceu a polícia e as demais autoridades e havia uma
apertada segurança por causa dos atentados. Ouvira dizer que, mesmo
entre a multidão, estariam agentes da polícia secreta, disfarçados e à
paisana.
De repente, sentiu-se segurado pelos braços e quando
olhou, dois matulões fortes e grandes, sem serem fardados, afastaram-no
do sítio aonde estava e perante o ar atónito da multidão, empurraram-no
para o chão.
-
Porco basco, un atentado, verdad? – disseram-lhe
em espanhol e quando Peninha, se propunha responder, apalparam-no todo,
encontraram o
alho-porro, arrancaram a boina e despiram-lhe a capa.
Contra uma parede de braços levantados e de camisa branca, ouvia a
multidão gritar: -
al paredón, al paredón!
Foi levado para os
calabouços da polícia municipal, atirado para uma cela, e quando só mais
tarde conseguiu tudo explicar, Sua Majestades já tinham partido para
Lisboa!