domingo, 21 de fevereiro de 2016

Uma perspectiva sobre a morte, eutanásia e quejandos...muito bem escrito

Morte, minha Senhora Dona Morte, Tão bom que deve ser o teu abraço!

Considero-me um ser racional, esforço-me por ser tolerante e prezo muito a minha independência. Nunca dela abdiquei e não tenciono abdicar agora que a vida entra a passos largos no «winter of our discontent». Talvez por isso, nunca consegui ter religião ou clube de futebol ou partido político, precisamente porque nunca me senti à vontade em apriscos, fossem eles do Senhor, da bola ou da política. Como dizia o tantas vezes citado Jesus Ortega Cortès, gitano e filósofo valenciano que conheci em tempos de juventude, «Xestelabie!»
 
Reservei-me sempre, seguindo o conselho de Hipácia de Alexandria, «o direito de pensar, porque mesmo pensar erradamente é melhor do que não pensar sequer» e assim vivi e vivo, com poucas concessões excepto as que o amor me dita e são uma enorme dádiva àqueles de quem gosto. Aos outros, nada, que não quero morrer santo (estado que desconheço inteiramente o que seja, mas para mim vem sempre acompanhado de incenso e ladainhas), ademais porque acredito piamente na velha máxima de mestre Gil Vicente, no Auto da Alma, de que «tudo se descarrega no porto da sepultura» e, portanto, nada mais resta, nem essa tal alma que foi mote do auto do mestre Gil. Sou, por conseguinte, incréu impenitente, fier de l’être, com a determinação que herdei de gerações de marranos dessa província onde mandam os que lá estão. É assim, não adianta, mais que não seja por teimosia minha não me hão-de converter… 
 
E aí vamos cair no grande papão do momento, a tal eutanásia, coisa do demo, que priva o demiurgo da grande obra da outra senhora (já santa) que, na Índia, distribuía aspirinas a doentes terminais de cancro para que, pelo sofrimento, pudessem salvar as suas almas. Estranhamente, foi morrer no doce conforto de uma clínica de Zurique onde lhe deram, certamente, mais do que aspirina, mas na verdade ela já tinha lá os outros párias a gemer por ela… É estranho como também o Marquês de Peralta, na sua obra seminal Camino, afirma: «Bendito sea el dolor. -Amado sea el dolor. -Santificado sea el dolor... Glorificado sea el dolor!» Com todo o respeito, venham analgésicos, tratamentos paliativos, la totale, que essa coisa de «bendito, amado, santificado e glorificado sea el dolor» é coisa sado-masoch e eu sou definitivamente dom e não sub. Portanto, não reconhecendo qualquer valor salvífico ao sofrimento, defendo com unhas e dentes o meu direito de decidir quando chegou a hora de tirer ma révérence, como bom actor que não espera morrer trôpego do palco, a babar-se e sem saber o texto. 
 
O mesmo se aplica à dor moral de não poder comunicar, de perder o mundo por ter perdido a mente, de ter ficado num limbo onde ninguém chega e onde já ninguém existe. Me desculpem, se os meus filhos querem passar mais uns tempos comigo nesse estado, poupem-me a degradação última, deixem-me morrer e depois levem as minhas cinzas alternadamente para casa de cada um, que o resultado é o mesmo: não comunicam comigo, nem eu com eles, e tem a vantagem de não terem de me alimentar e lavar e tudo o mais e de eu ser muito mais portátil do que se estivesse vivo. Mas isto sou eu, incréu, egoísta, hombre malo y mal averiguado. Privo o demiurgo do meu sofrimento redentor, a família da minha companhia alegre, cheio de tubos e agulhas ou perdido num nevoeiro pior do que o de Dom Sebastião, e tudo porque, insisto, me recuso a abdicar do meu direito a dispor da minha vida. 
 
Parece que não, que esse direito não existe e que gente geralmente bem-pensante, genuinamente preocupada com o futuro da humanidade em geral e o meu em particular entende que não, que essa coisa chamada vida pertence um qualquer demiurgo, que no-la deu sabe-se lá por obra e graça de que divino espírito santo, e nos obriga a comê-la com batatas e a bebê-la até às fezes (como diz, ou dizia, que ao longo da vida já assisti a várias versões das escrituras, o evangelho). E pronto, meu amigo, se tiveste o azar de ser apanhado pela neoplasia ou pela demência ou outro pesadelo qualquer, aguenta forte e feio que é tudo ad maiorem Dei gloriam como diz o lema dos jesuítas. Azarinho, portanto, como dizem os mitras… 
 
Por estas e outras, cada vez acho mais que este mundo se está a transformar numa enorme chatice e este país, como disse o Eça, «não é um País, é um sítio! Ainda por cima muito mal frequentado!» Tudo me quer tratar da saúde, da alma, mostrar-me o droit chemin, a mim que trilhei sempre o caminho que tracei e tinha mais curvas e contracurvas que o caracol de Murça. Está tudo a perder a graça ou então sou eu que perdi o sentido de humor.
 
Pedi de empréstimo a Florbela Espanca os versos que servem de título.
 
 Artur Lopes Cardoso

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