Tudo cinzento na janela, árvores, casas, tudo triste. Nem uma
pessoa na rua, nem um bicho. Frio. E eu sentado nesta mesa, à espera de
uma crónica que não aparece. Vou enchendo a página de palavras na
esperança de que alguma salte como um peixe. Não salta. Ficam no fundo
do papel, escondidas, nem a sombra lhes vejo. Se calhar acabaram-se, as
palavras.
Penso no Pedro. Desde que morreu, no dia vinte e um de dezembro, nem há um mês ainda, é quase só o que faço, pensar nele. Não estou a escrever, estou a acabar de corrigir um livro, que é um trabalho diferente, posso fazer com o Pedro à beirinha. Aliás ele sempre foi calado, sou eu que pago a conversa. Estamos aqui, estamos em Torres Novas, estamos noutros sítios por onde andámos juntos e, como quase sempre, o nosso diálogo é feito de silêncios, com uma frase ocasional de vez em quando.
Custa-me redigir isto, mas lá vou coxeando. Tudo cinzento na janela. Há anos, estávamos sozinhos os dois, à noite, na rua, o Pedro caiu em coma à minha frente. Era um derrame na cabeça, o João operou-o e salvou-se. Desta vez morreu na voz do João, que recebeu a notícia pelo telefone e, de repente, o dia principiou a coxear. Até hoje nem um deixou de coxear. Eu não percebo a morte. Provavelmente também não percebo a vida. Existirá alguma coisa para perceber? E, no que se refere a isto ter acontecido ao meu irmão, então aí não percebo nada. Árvores, casas, tudo triste, já se inventou coisa pior do que janeiro? Nem uma pessoa na rua, nem um bicho. Frio. Se uma pontinha de sol, ao menos.
Hoje jantar em casa dos meus pais sem o Pedro, não faz sentido jantar em casa dos meus pais sem o Pedro. O lugar dele é à direita da mãe. Quem o ocupará? Eu sento-me na cadeira do meu pai e o mundo é muito diferente visto dali. Normalmente pouco digo, pouco oiço. Hoje penso que vou ouvir-te o tempo todo, mais o que existe nos intervalos das frases, ou seja, o principal. E o principal, o único, é a tua ausência. O que me é insuportável é que a tua ausência vai continuar a existir. Para sempre. E é muito difícil pensar que não estarei mais contigo.
A gente, claro, conhece-se desde que tu nasceste. Temos o mesmo sangue. Quando te trouxeram para casa, numa alcofa, eu era uma criança de três anos e estava doente dos pulmões. Tuberculose. Lembro-me de te mostrarem a mim e eu ficar a arder de ciúmes, porque me davam menos atenção. Recordo-me tão bem disso. A arder de ciúmes, furioso. Recordo-me e espanto-me porque não sou ciumento. Também não sou invejoso. Algumas qualidades havia de ter, caramba. Nem são qualidades sequer, quando muito ausência de defeitos. Pedro. Moreno. De cabelo escuro, ao contrário dos teus irmãos loiros e de olhos azuis, os já nascidos e os que viriam a nascer.
E depois, a pouco e pouco (tudo cinzento na janela, árvores, casas, tudo triste) uma grande ligação entre nós foi crescendo. Possuo cartas tuas da guerra, cheias de amor contido. Foste primeiro do que eu, voltaste antes da minha partida. Depois conheci uma rapariga e levei-te para ta apresentar. Achei que te calhava bem. Calhou. A gaita é a vida inteira durar tão pouco tempo.
Começa a anoitecer agora. Nem uma janela acesa no outro lado da rua. Eu aqui a fazer isto. Trago tanto para te contar que não consigo contar nada, tanto para contar de ti que não consigo contar nada. Aqui entre nós para quê? Tu sabes tudo o que eu poderia escrever e, o resto, a quem interessa? E depois existem coisas só nossas, íntimas, secretas, sem interesse para os outros, creio. E o que já não podemos partilhar porque morreste para sempre, porque vou morrer para sempre. Ficam aqueles que prolongarão o nosso sangue, cada vez mais diluído no sangue dos outros. Até o nosso sangue, que era um só, desaparecerá. E, depois, nada.
Tanto frio, Pedro, hoje. Já não distingo as árvores, distingo, na rua, um candeeiro desfocado. Só um. Ambos moramos em sítios feios e tristes, nesta cidade hoje feia e triste. É quinta-feira. Dia de jantar nos pais. Não te vou encontrar e, todavia, sei que passarei o tempo à tua espera.
- Porque carga de água o Pedro não veio hoje, ele que vinha sempre?
E não vou entender. E ficarei incapaz de entender. E ir-me embora sem entender. Nem sequer que morreste entenderei. Até ao fim dos meus dias não entenderei nunca. Diz-me lá uma coisa: achas que isto faz algum sentido? Achas que isto é justo? O que era cinzento na janela negro agora. Não faz sentido nem é justo.
E não me acenarás do teu carro à medida que te afastas, não fazes a curva nem te afastas de mim. Não és. Não voltarás a ser. E, pior do que tudo, realmente o pior de tudo, acabará a tua mão no meu ombro, acabou a tua mão no meu ombro. Ou fui eu, mano, que deixei te ter ombro?
Penso no Pedro. Desde que morreu, no dia vinte e um de dezembro, nem há um mês ainda, é quase só o que faço, pensar nele. Não estou a escrever, estou a acabar de corrigir um livro, que é um trabalho diferente, posso fazer com o Pedro à beirinha. Aliás ele sempre foi calado, sou eu que pago a conversa. Estamos aqui, estamos em Torres Novas, estamos noutros sítios por onde andámos juntos e, como quase sempre, o nosso diálogo é feito de silêncios, com uma frase ocasional de vez em quando.
Custa-me redigir isto, mas lá vou coxeando. Tudo cinzento na janela. Há anos, estávamos sozinhos os dois, à noite, na rua, o Pedro caiu em coma à minha frente. Era um derrame na cabeça, o João operou-o e salvou-se. Desta vez morreu na voz do João, que recebeu a notícia pelo telefone e, de repente, o dia principiou a coxear. Até hoje nem um deixou de coxear. Eu não percebo a morte. Provavelmente também não percebo a vida. Existirá alguma coisa para perceber? E, no que se refere a isto ter acontecido ao meu irmão, então aí não percebo nada. Árvores, casas, tudo triste, já se inventou coisa pior do que janeiro? Nem uma pessoa na rua, nem um bicho. Frio. Se uma pontinha de sol, ao menos.
Hoje jantar em casa dos meus pais sem o Pedro, não faz sentido jantar em casa dos meus pais sem o Pedro. O lugar dele é à direita da mãe. Quem o ocupará? Eu sento-me na cadeira do meu pai e o mundo é muito diferente visto dali. Normalmente pouco digo, pouco oiço. Hoje penso que vou ouvir-te o tempo todo, mais o que existe nos intervalos das frases, ou seja, o principal. E o principal, o único, é a tua ausência. O que me é insuportável é que a tua ausência vai continuar a existir. Para sempre. E é muito difícil pensar que não estarei mais contigo.
A gente, claro, conhece-se desde que tu nasceste. Temos o mesmo sangue. Quando te trouxeram para casa, numa alcofa, eu era uma criança de três anos e estava doente dos pulmões. Tuberculose. Lembro-me de te mostrarem a mim e eu ficar a arder de ciúmes, porque me davam menos atenção. Recordo-me tão bem disso. A arder de ciúmes, furioso. Recordo-me e espanto-me porque não sou ciumento. Também não sou invejoso. Algumas qualidades havia de ter, caramba. Nem são qualidades sequer, quando muito ausência de defeitos. Pedro. Moreno. De cabelo escuro, ao contrário dos teus irmãos loiros e de olhos azuis, os já nascidos e os que viriam a nascer.
E depois, a pouco e pouco (tudo cinzento na janela, árvores, casas, tudo triste) uma grande ligação entre nós foi crescendo. Possuo cartas tuas da guerra, cheias de amor contido. Foste primeiro do que eu, voltaste antes da minha partida. Depois conheci uma rapariga e levei-te para ta apresentar. Achei que te calhava bem. Calhou. A gaita é a vida inteira durar tão pouco tempo.
Começa a anoitecer agora. Nem uma janela acesa no outro lado da rua. Eu aqui a fazer isto. Trago tanto para te contar que não consigo contar nada, tanto para contar de ti que não consigo contar nada. Aqui entre nós para quê? Tu sabes tudo o que eu poderia escrever e, o resto, a quem interessa? E depois existem coisas só nossas, íntimas, secretas, sem interesse para os outros, creio. E o que já não podemos partilhar porque morreste para sempre, porque vou morrer para sempre. Ficam aqueles que prolongarão o nosso sangue, cada vez mais diluído no sangue dos outros. Até o nosso sangue, que era um só, desaparecerá. E, depois, nada.
Tanto frio, Pedro, hoje. Já não distingo as árvores, distingo, na rua, um candeeiro desfocado. Só um. Ambos moramos em sítios feios e tristes, nesta cidade hoje feia e triste. É quinta-feira. Dia de jantar nos pais. Não te vou encontrar e, todavia, sei que passarei o tempo à tua espera.
- Porque carga de água o Pedro não veio hoje, ele que vinha sempre?
E não vou entender. E ficarei incapaz de entender. E ir-me embora sem entender. Nem sequer que morreste entenderei. Até ao fim dos meus dias não entenderei nunca. Diz-me lá uma coisa: achas que isto faz algum sentido? Achas que isto é justo? O que era cinzento na janela negro agora. Não faz sentido nem é justo.
E não me acenarás do teu carro à medida que te afastas, não fazes a curva nem te afastas de mim. Não és. Não voltarás a ser. E, pior do que tudo, realmente o pior de tudo, acabará a tua mão no meu ombro, acabou a tua mão no meu ombro. Ou fui eu, mano, que deixei te ter ombro?