quinta-feira, 26 de julho de 2012

Torralta (fim) Mário Soares e eu ou "The King and I"


A justificação da ida do Presidente Soares à Torralta, era a de entregar o prémio da Associação Portuguesa dos Escritores (Comunistas), que se desenrolaria no auditório em Tróia.

Devo confessar com toda a sinceridade que não só não sabia desse evento, como fui confrontado pelo Director Financeiro com a informação de que o cheque do prémio que o Presidente iria entregar, era “careca”, ou seja não teria provisão!

Passei esta informação ao meu primo General Carlos Azeredo dizendo-lhe que seria uma vergonha para o Presidente da República entregar um prémio cujo cheque não teria cobertura, e o Chefe da Casa Militar pediu-me para esperar enquanto iria consultar Mário Soares, tentando dissuadi-lo.

Entretanto, tudo se passava na frente dos sindicatos a quem eu paulatinamente explicava que a vinda do Presidente da República à Torralta era uma provocação ao Primeiro-ministro Cavaco Silva, que era quem tinha a tutela da Torralta, através do Governo. Viria com toda a imprensa escrita, rádios e televisões para entrevistar os trabalhadores e ouvir as suas queixas e angústias e na prática, nada adiantar, pelo contrário publicitando ainda mais a situação da Torralta que precisava de continuar a receber turistas e passantes, enquanto a situação não se resolvesse.

Sendo primos e tendo intimidade suficiente, não hesitei em dizer-lhe ao telefone tudo isto em voz alta para todos ouvirem. Estavam calados, sem nada dizer.

Veio de lá uma voz desolada do General Carlos Azeredo, dizendo-me que o Presidente confirmou-lhe que vinha e que quanto ao cheque sem provisão, o problema era da Administração da Torralta. Ele entregaria o prémio e quando o destinatário o fosse depositar, já não seria mais da sua responsabilidade. Foi ipsis verbis o que eu transmiti aos trabalhadores, perguntando-lhes o que fariam no dia da visita e eles nada responderam!

Mais uma vez fiquei tranquilo e pensei que tudo tinha feito para evitar o pior. Lembrei-me de um filme antigo com o Yul Brynner chamado “The King and I” e pensei que se poderia aplicar ao meu caso!

No dia aprazado, o Presidente Soares aterrou de helicóptero no campo de futebol trazendo atrás de si toda a imprensa, nomeadamente as televisões. O percurso até ao auditório ainda era longo e eu tinha providenciado para que o meu carro e motorista estivessem prontos para nos levar.

Estava uma manhã linda de sol e os trabalhadores, os tais 700 e tal, alinhavam-se de cada lado, fazendo alas.

Cumprimentei o Dr. Mários Soares que se me dirigiu afavelmente e bem disposto e me tratou: - Como está o Senhor Presidente? Ao que lhe respondi que quem era Presidente era ele. Respondeu-me então, que éramos dois Presidentes: ele da República e eu da Torralta!

Pedi-lhe para tomar lugar no meu carro e ele respondeu-me que estava um dia soberbo e que iríamos os dois a pé, à conversa. Entretanto, não deixou de reparar naquela mole humana de gente com um ar triste e silencioso.

Percorremos lentamente o caminho, passando entre os trabalhadores que se mantiveram num silêncio total e absoluto e quando chegámos à porta do auditório, disse-me de caras:

- Dou-lhe os meus parabéns, eu vinha preparado com a imprensa, rádio e televisões para ouvir as queixas dos trabalhadores contra o Governo e o Senhor Presidente, por milagre, conseguiu que estivessem calados. Como fez?

- Saiba V.Exª que lhes disse a verdade, a qual é tudo quanto acabou de dizer, acrescido de que ficariam ainda mais prejudicados se contribuíssem para mais quezílias institucionais, uma vez que V.Exª nada tem a ver com qualquer solução que se venha a encontrar para a Torralta.

Ficámos entendidos e devo dizer que Mário Soares que tem um charme indiscutível, dali para a frente fez com que tudo corresse com dignidade e sobriedade, e o dito cheque foi entregue nas condições que se lhe tinham comunicado, tendo o Presidente, em voz baixa, dito que sabia o problema que me estava a causar, mas que esperava que entretanto entrasse dinheiro. O montante, nesse momento, era relevante para a Torralta pois não tínhamos sequer, em caixa, os referidos Euros 2,000,00! Imagine-se a penúria!

Convidei o Presidente para almoçar no terraço do restaurante do Golfe. É uma maravilha de localização, de traçado conhecido e muito apreciado, de soberbas vistas para o mar e o ambiente não podia agradar mais ao Dr. Mário Soares e à sua comitiva.

Faço aqui um pequeno aparte, aliás doloroso pois hoje em dia estamos quase na mesma situação: era tudo fiado, ou seja não se pagava aos fornecedores que tinham proporcionado o almoço, o que para mim era um horror!

A conversa entre o Presidente, jornalistas, escritores, políticos e deputados fluía com facilidade, ajudada por generoso vinho que se servia amiúde, e eu, muito mais novo e não tendo conspirado contra ninguém nem nenhum regime, nem sequer ter estado no exílio, pois nem nascido era, estava calado polidamente, como dono da casa.

A um comentário infeliz e provocador do Presidente que aqui não reproduzo, intervim finalmente e respondi respeitosamente, mas na mesma moeda!

Mudou de assunto com galhardia e resolveu contar duas divertidas histórias que tinha vivido recentemente na sua visita de Estado, ao Reino Unido.

Afirmou que desde que era Presidente, o Protocolo de Estado tinha recuperado o seu devido prestígio, com apresentações de credenciais dos Embaixadores, de fardas e condecorações, fraque e luvas cinzentas, que as recepções em Queluz eram de gala com casaca e insígnias, enfim gabava-se de ser um entendido, eis senão quando o Protocolo do Foreign Office inglês, exige, sem transigir, que levasse luvas cinzentas e chapéu alto, quando descesse do combóio em Victoria Station e fosse ao encontro da Rainha, que aí o esperava. Confessou com simplicidade que se atrapalhou, pois nunca o tinha usado, mas levava-o na mão e assim cumprimentou Sua Graciosa Majestade.

O Dr. Mário Soares, acrescentou com bonomia que continuava a não saber falar inglês, mas que a Rainha e a Família Real, eram impecáveis no domínio da língua francesa, pelo que antes de tomar a carruagem aberta em direcção a Buckingham, perguntou à monarca o que devia fazer com o chapéu alto!

A Rainha Isabel, conta o Presidente, disse-lhe: - Em primeiro lugar ponha-o na cabeça e depois quando nos aplaudirem, tire-o e acene com ele. Dei uma forte gargalhada e naquele momento, esqueci-me do que aquela vinda poderia ter causado e apreciei o Homem, pois tinha tido muita graça.

Não contente com este episódio, narrou que estando num banquete oferecido pelo Mayor de Londres, tinha de cada lado a Rainha-Mãe e a Rainha Isabel.

Acrescentou que já tinham dito tudo uns aos outros tendo-se, por isso, criado um certo silêncio entre eles. A Rainha-Mãe era pequenina de estatura, por isso veio um criado trazer-lhe um banquinho para os pés e uma almofada para ficar ao nível de todos.

De repente a Rainha-Mãe, vira-se para o Presidente e pergunta-lhe: - O Senhor é religioso?

O Dr. Mário Soares, respondeu: Eu não, minha Senhora! - Ora ainda bem, retorquiu a Rainha-Mãe, pois assim podemos conversar sobre outros temas, pois tenho ao meu lado o Arcebispo de Cantuária que só me fala de assuntos maçadores de religião!

E assim termina o meu filme “The King and I”. Acompanhei-o ao helicóptero, despedi-me e voltei a encontrar-me muito mais vezes com ele fruto da minha vida profissional guardando sempre, entre nós, uma boa recordação destas histórias tão picarescas.

Pena, que as pessoas não saibam sair a tempo!

O resto da minha experiência na Torralta, não é preciso contar pois é conhecido.

Pertence hoje em dia aos Grupos de Belmiro de Azevedo e de Américo Amorim, que estiveram mais de 8 anos para poderem começar as obras e agora, que estão acabadas, dá gosto visitar, ficar por lá e gozar o esplendoroso cenário e tudo quanto lá se desfruta.

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