sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O Carnaval de Veneza


O Carnaval em Veneza sempre foi uma tradição.

João sempre idealizou participar naqueles bailes decadentes com falsos príncipes e princesas, ostentando trajes ricos, elaborados e sensuais, mas sobretudo o que o mais entusiasmava era poder estar escondido atrás de uma máscara e ser ele, roçar-se e rolar-se sem temores de ser insultado, por meio dos homens e dos rapazes e por uma vez fazê-lo com liberdade.

Esta era uma palavra que ele prezava muito e nos seus estudos, apesar de parcos, tinha sempre fixado a história dos países aonde se narravam lutas vitoriosas contra a opressão e a liberdade.

Sentia-se livre por dentro e desde novo, mesmo contra o desgosto dos pais, assumira que era diferente…dos primos, dos rapazes da rua, dos colegas de escola e gostava de ser mulher, efeminado, de coisas delicodoces e delicadas, de conversas de intriga e maldizer, de revistas com sedas e frufrus, de tudo quanto o fizesse sonhar.

Por isso, quando se vestia de dona, era disfarçado que gozava a sua liberdade. Maquilhava-se, pintava as unhas, tinha uma pele suave e cuidada e a boca ficava vistosa e garrida com os batons que usava.

Acabava sempre por passar o Carnaval em Loulé ou até já tinha ido a Torres Vedras, mas sem graça nenhuma…reles, com putos a insultá-lo:

- Ó bichona vê lá se te perdes com tanto homem nú, minha cadela! – e João, vestido de mulher sempre a rigor, com trajes que variavam de ano para ano e que tirava do baú de casa da avó, estremecia de tristeza com os epítetos que lhe dirigiam.

Animou-se, comprou um bilhete e ala para Veneza. Escolheu um tour numa agência de viagens conhecida de Lisboa que incluía a viagem, a estadia e o direito a um bilhete de acesso a um baile de máscaras num pallazzo de Veneza, com uma ida e volta de gôndola para o hotel! Uma fortuna tinha-lhe custado o pacote, mas rejubilava por se ter decidido!

Foi tudo pensado: alugou um vestido de dama antiga em seda e com roda em baixo, cheio de rendas e fitas e decotado no peito, uma máscara de strass de cores variegadas e na véspera da partida foi ao cabeleireiro com uma peruca loira que alugara, para que a penteassem em complemento do rico traje de Madame de Pompadour! Até encontrou uns sapatos de cetim cor-de-rosa no baú da avó, que ficavam a matar com umas meias de seda brilhantes que apareceriam, quando no baile mexesse as saias.

João embarcou no avião low cost e ficou logo enervado quando constatou que no seu voo para Veneza iam muitos portugueses que tinham, também, comprado o mesmo pacote na mesma agência de viagens.

Estava uma noite fria, João sentia-se divinal e irreconhecível no seu vestido de grande dama da corte e espraiava-se nas almofadas da gôndola, enquanto os gondollieri lhe dedicavam canções românticas.

Chegado às escadarias do palazzo, uma mão gentil segurou-o para saltar para o solo e vislumbraram-se uns sapatinhos de seda com meias de laçarotes a tocarem delicadamente a pedra dos degraus, por debaixo das suas saias com muita roda.

Champagne, música e rodopio de corpos, sedução de máscaras ricas e variadas e João sentia-se como no céu! Era tudo isto com que tinha sonhado!

Não sabia uma única palavra de italiano, mas com as faces rosadas com pó de arroz que deixava entrever de quando em vez por detrás da máscara de strass brilhante, saiam-lhe uns risinhos estridentes com que mimoseava uns e outros. E era correspondido!

De súbito, sente alguém puxá-lo para a dança e para o corropio, e arrastado com veemência para a pista cai nos braços de um mascarado de Doge de Veneza, que o aperta e tenta beijar.

Aflito e ao mesmo tempo encantado – sonhara um dia ter este tipo de epílogo – sai-lhe uma frase em português:

- Credo, que despropósito!

E qual não é o espanto quando o seu parceiro romântico, tirando a máscara lhe lança sem pudor para a cara, em bom português:

- Bem me parecia que havia um paneleiro que vinha no avião do tour!

MNA

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