quarta-feira, 27 de abril de 2011
Conto da dona Lili (I)
- Sou a dona Lili, sabem? Toda a gente me chama assim, e eu gosto! – disse para os presentes uma velhinha simpática.
Eu estava na clínica, na Amadora, à espera da consulta.
A dona Lili devia lá morar por perto.
- Só cá volto daqui a duas semanas, por isso desejo às meninas – duas recepcionistas fardadas – as maiores felicidades, que corra tudo bem. Vendia felicidade, distribuindo bons votos numa harmoniosa voz meia cantada.
No regresso a casa, pensava eu, sentiria um calorzinho devoto de ter sido muito afável nesse dia, cumprimentando todos à passagem.
A dona Lili, afinal era uma peste, cínica e acabara por viver sozinha, pois ninguém a aturava. Vim a saber toda a história pela enfermeira que me fazia fisioterapia.
O senhor Arnaldo, com quem tinha vivido uns 30 anos, já há muito que a deixara.
Nunca se casaram. Ao princípio ainda havia atracção física, mas mesmo na cama era chata, formal e recusava qualquer ousadia mais atrevida.
Nem sequer era pela religião. Filha de republicanos ateus, nunca tinha ido à catequese, frequentado sacramentos ou sequer baptizada.
Fora inscrita numa escola pública da Amadora, e não consta que tivesse feito amigos ou amigas.
Cumprira o básico e sabia ler, escrever e fazer mal as contas.
Sempre adorara ler romances, de preferência de cordel, e interiorizava os personagens dos livros que lia, dai os seus ares adamados no modo de conviver.
A dona Yvete, era a única vizinha que a visitava. Casada com o senhor Amílcar, motorista de táxi, tinha servido como criada em casa de uns patrões endinheirados, antigos emigrantes no Brasil que voltaram ricos e moravam numa vivenda rococó cheia de cacaria, alguma da qual dona Yvete exibia em armarinhos pirosos por toda a casa.
Tinha alguma paciência para a dona Lili, pois sendo iletrada, ouvia deliciada as histórias que ela lhe lia, descrevendo mundos que a faziam sonhar e que de certa maneira ela testemunhara quando estivera a servir.
Andava a ler o “John, chauffeur russo” da Magali, da colecção azul e sempre que podia, implicava com a dona Yvette:
- Isto sim, o John é que é um chauffeur distinto. Lá o seu marido, sempre num táxi, não priva com gente fina. Pois este sempre com um primor de farda, boné e sabendo encantar.
A dona Yvette dizia umas coisas ao marido que furioso lhe respondia de maus modos:
- Essa megera é igualzinha a ti e a mim e tem manias de que é fina lá porque lê esses livros. De resto, se não fosses tu, nem teria quem lhe escutasse essas idiotices. Deixa-me em paz!
A dona Lili nesse dia voltara da clínica muito consumida. O médico dissera-lhe que, seca de carnes como era, o cancro roía-lhe as entranhas e que muito em breve teria que ser hospitalizada.
Perguntara-lhe se não tinha nenhum familiar com quem ele pudesse falar para combinar o internamento.
Exausta, deixou-se cair na cadeira aonde se sentava normalmente para ler, junto à janela. Tinha ainda uns bons 30 minutos a sós, antes que a dona Yvette lhe aparecesse.
Burra que tinha sido! Vida miserável de solidão que tinha tido. Deixado partir o Arnaldo que até era boa pessoa e parecia ao princípio gostar dela. Não resistia a interpelá-lo por tudo e por nada. Tinha opinião sobre todos os assuntos e ele amofinava-se. Para o fim só o silêncio respondia aos seus guinchos e às lamúrias e queixas constantes que lhe fazia.
Fora fria e pouco expansiva para com os pais e a única avó que conhecera, lembrando-se até que já nessa altura gostava de ser recta pronúncia, contrariando-os e levando-os ao desespero.
Na escola azedara. Não se lembra de grandes emoções nem amizades. Era tolerada mas mais nada.
E agora só, doente, remediada – o pai deixara-lhe o rés-do-chão da casa modesta aonde morava com o respectivo recheio, uma pensão de reforma suficiente e alguns depósitos na Caixa – a quem iria deixar o seu mundo, os seus livros e os seus bens?
Tocaram no vidro da janela e uma voz que não era a de dona Yvette, perguntou se era ali que morava a dona Libertária Gomes.
- Quem é? – perguntou com uma voz entre o espanto e algum receio. Não esperava ninguém.
- Maria Alberta Pereira, a sua prima.
Não tinha primas, pelo menos nunca conhecera nenhum parente. Estranho, pensou.
- O que deseja? Não me lembro de ter primas – disse com um ar seguro e convicto.
- Se me deixar entrar explico-lhe tudo. Sou prima do lado da sua mãe. Tinha um irmão que foi para o Brasil e lá casou e teve uma filha. Eu sou neta desse irmão.
(continua)
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Essa não é Caneças!...
ResponderEliminardefinitivamente não!
ResponderEliminarGostei, mas imaginar que o Arnaldo há muito a tivesse deixado após 30 anos, sugeriu-me que: 1) ela andasse na casa dos oitenta. E isto de uma Sra. de 80 nunca se ter casado em plagas lusas, plena república salzarista, poderia gerar processo a ser investigado pela PIDE e pelo Vaticano. E 2) que tal Arnaldinho aos 60 ter ido ao Brasil e num recanto carioca ter encontrado o ex-cunhado agora também descasado e amigado com D. Miminha, uma mulata 18 anos mais nova e que ainda ditava regras nos ensaios da Mangueira.
ResponderEliminarQue divertido cenário! Vou reflectir mas com moderação pois há censura no burgo!
ResponderEliminarBoa escrita!
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